Se não podemos avançar, que fiquemos no mesmo lugar

Importa lembrar e trazer para o debate público que não estamos disponíveis para abdicar dos princípios de justiça social que regem os nossos Estados de Direito Democráticos e que as pessoas têm de estar no centro das decisões políticas.

Já todos experimentámos momentos em que não conseguimos avançar. Em que, desordenados interiormente, temos dificuldade em ver com clareza, com os olhos do corpo e da alma. Nessas alturas, sabemos que o melhor para nós é não tomar grandes decisões (nem decisões grandes), mas antes tentar reconhecer e nomear o que nos está a desolar e, de forma serena, tentar recuperar a consolação.

O mesmo é (ou deveria ser) verdade para os Estados e para as suas instituições, sobretudo quando falamos de direitos humanos/sociais.

Numa sociedade polarizada como aquela em que vivemos, é difícil avançar em matérias de justiça social. Os consensos antes obtidos na segunda metade do século XX, em resposta às atrocidades cometidas em duas guerras mundiais e com o florescer de muitas democracias, são agora uma realidade longínqua e muitas vezes secundarizada.

A clareza com que antes víamos a importância e centralidade de documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ou os inúmeros tratados de cooperação entre Estados, é hoje reiteradamente desconsiderada, impedindo avanços em matérias de educação, proteção dos trabalhadores, saúde, segurança alimentar, clima, entre muitos outros.

Há uma descoordenação de políticas públicas dos Estados, um desalinhamento sobre quais os direitos que devem ser priorizados e protegidos para melhorar as condições de vida e de trabalho da pluralidade de cidadãos e de culturas que formam as comunidades modernas, e sobre qual o nível de proteção social adequada e que combata a exclusão social. Estamos envolvidos numa nebulosa quanto ao que queremos enquanto sociedade, hoje e amanhã.

É neste contexto de ausência de diálogo, alimentado por muitos atores político-partidários (sobretudo de um dos lados do Atlântico, mas não só), em que cada extremo tenta impor a sua vontade sem ouvir os outros, sem procurar quaisquer pontos de convergência, que nós, cidadãos políticos (habitantes da polis), somos chamados a agir e a intervir, pelo menos para garantir que não retrocedemos e não deixamos as pessoas para trás.

Importa demonstrar aos Estados e às suas instituições que se reconhece e se tem intenção de preservar o caminho percorrido nos últimos 70 a 80 anos, e que nos mantemos empenhados em melhorar a qualidade de vida das gerações presentes e futuras, mesmo que, em alguns momentos, o mais que seja possível fazer é não agravar as condições da realidade presente.

Em democracia, o que se pretende é, em conjunto, encontrar o caminho que é melhor para todos, e já muito foi conseguido. É desse caminho conjunto andado que não podemos abdicar.

Em democracia, o que se pretende é, em conjunto, encontrar o caminho que é melhor para todos, e já muito foi conseguido. É desse caminho conjunto andado que não podemos abdicar.

Perante uma aparente paralisação dos Estados democráticos por ausência de convergência, é importante defendermos o alargamento do princípio comercial de standstill (mecanismo importante na União Europeia que visa manter a estabilidade e previsibilidade em diversos contextos legais e económicos) aos direitos sociais já conquistados, assegurando que o nível de proteção (em matérias de educação, emprego, política social, saúde, segurança de consumo) em vigência não será mais restritivo do que o atual.

Estes valores têm de ser para nós inegociáveis. São a base da nossa identidade social, e só defendendo este património comum poderemos tentar começar a combater esta fragmentação de discursos políticos e procurar, de novo, encontrar uma plataforma de entendimento para iniciar novos projetos de co-construção.

Devemos isso uns aos outros. Só assim existe verdadeiro cumprimento do princípio da proteção da confiança, impedindo o retrocesso em matéria de direitos sociais já adquiridos, mantendo a estabilidade social e a possível previsibilidade quanto ao futuro.

Importa lembrar e trazer para o debate público que não estamos disponíveis para abdicar dos princípios de justiça social que regem os nossos Estados de Direito Democráticos e que as pessoas têm de estar no centro das decisões políticas.

Quando pensamos sobre direitos ou valores que queremos que as políticas públicas defendam, podemos não ter todas as respostas, mas temos de ter claro que queremos, pelo menos, que defendam os direitos sociais já conquistados, porque são melhores as políticas públicas de standstill do que as políticas públicas em downhill.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.