Fomos convocados a regressar a casa. À força. Com as incertezas do que deixámos e do que aí virá de difícil. Parece que as nossas representações de futuro caem, o destino foge-nos do controlo, o problema de um vírus que vem ao nosso encontro impõe-se. Há um misto de entusiasmo com a mudança obrigatória e o medo de que a adaptação se torne demasiado custosa. Vão acumular-se as decisões de outros que nos implicam e que saem da rotina e da normalidade a que bem ou mal estávamos habituados. Tornar-nos-emos mais críticos em relação a tudo. A tensão vai aumentar e coisas insignificantes já se empolam. Vamos ter de discernir o que fazer, como fazer, usar a criatividade, e voltar a casa. Regressar à casa que nos espera e na qual somos indispensáveis.
Antes de mais, voltar à casa do Pai. Àquela casa comum que abandonámos aos poucos que nem um filho pródigo com a correria da vida. Estar de quarentena permite-nos dar valor àquilo de que agora já não podemos usufruir: a casa do Pai. Os passeios, o sol, a natureza, as cores, os cheiros, os sabores. Os rios e os vales, os pássaros e a Primavera a despontar, os frutos colhidos da árvore e sorvidos no momento. E os montes, o vento e o sol na cara. E questiono-me… afinal há quanto tempo estou eu em quarentena sem aproveitar nada disto? Provavelmente há demasiados anos.
Temos que reconhecer que é um grande privilégio regressar a casa. Porque regressar a casa é regrar e orientar de novo o tempo e o espaço para aquilo que é fundante e essencial. É optar pelo que aí nos é dado viver reconhecendo que isso é o mais importante e colocando o tempo e o espaço ao seu serviço.
Depois temos de regressar à nossa casa. Ao lar, ao lugar onde encontro aquilo que verdadeiramente sou. Aos meus, àqueles com quem sou agora chamado a viver ainda mais intensamente. Nas mil e uma piadas que têm circulado nestes dias, uma dizia: “Um amigo disse-me que com isto da quarentena esteve a falar um bocadinho com a mulher e que lhe pareceu até muito simpática”. Tirando o ridículo do exagero que torna a frase numa piada, podemos afirmar a sorte que teve este marido ao (re)encontrar a sua mulher simpática! É que podia mesmo ter tido a impressão contrária. O voltar a casa obriga-nos a redescobrir-nos com aqueles com quem vivemos, nos pormenores e nas pequenas nuances que o tempo foi modelando sem nos apercebermos. Esperemos que encontremos simpatia e que os outros também a encontrem em nós.[1] Isso dependerá da profundidade a que nos dispusermos no encontro. O desafio vai sendo maior com o passar do tempo. Mas com o esforço de todos vai tornar-se também melhor, porque teremos de cuidar e ser cuidados e isso exige humildade e verdade. Exige também que se faça memória de tanto bem recebido em casa, a partir de casa, reconhecendo a história que nos trouxe até aqui, hoje. A construção de uma árvore genealógica em família poderia ser um exercício giro de se fazer nestes dias caseiros, sobretudo com os mais novos, para fazer monumento de muitas histórias que nos trouxeram à condição presente.
Temos que reconhecer que é um grande privilégio regressar a casa. Porque regressar a casa é regrar e orientar de novo o tempo e o espaço para aquilo que é fundante e essencial. É optar pelo que aí nos é dado viver reconhecendo que isso é o mais importante e colocando o tempo e o espaço ao seu serviço. Estar em casa significa que as distâncias se encurtam para o fundamental e aumentam-se para o acessório. O tempo investido é aumentado no essencial e diminuído no que é dispensável. A liberdade joga-se nesta opção pelo mais (que quase tudo) que é a minha casa.
E por isso é que é um privilégio: porque há tanta gente que não sabe, ou não pode voltar a casa, ou não tem sequer casa para onde regressar. Muitos são os que apenas podem divagar no desencontro dentro das paredes onde vivem. Pela violência, pela desestruturação, pela pobreza, pela falta de “simpatia”, pela solidão, pela falta de sentido, pelo sofrimento, pela fuga, ou só pela falta de capacidade, pode viver-se uma quarentena como um suplício. O lar onde se poderia viver não o é, nem o será. É apenas um lugar de sobrevivência dramática. Curioso é que quando parece ser impossível a Vida, quando em causa está apenas o manter-se à tona de água para que se aguente mais um dia, quando a sociedade mostra que tem algo de muito podre nas relações inter-pessoais, brota daí uma força de resiliência quase miraculosa. Surge aí algo de liberdade entranhada e de alegria que nos tem de fazer questionar sobre algo de mais profundo que é uma Presença. Porque parecia impossível, mas há uma vontade quase exagerada de viver a sério. Eu chamo-lhe Deus, porque onde está a Vida, aí está Ele.
Se temos o privilégio do regresso a casa temos também a responsabilidade de desconstruir camadas que criam obstáculos e a falta de autenticidade nas relações, temos de gozar bem a liberdade de quem diz “eu amo-te”, porque é só assim que se pode Viver. Temos de abrir a porta e dizer ao Senhor: entra, vem comigo neste regresso, que preciso de Ti neste tempo de doença.
[1] Simpatia, do grego, é a conjugação de syn (junto) e pathos (sentimento), ou seja, é o sentimento de quem se sente unido a outra pessoa.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.