De Gaza para o mundo - o poder de Ranan - Ponto SJ

De Gaza para o mundo – o poder de Ranan

Viver sem água e sem eletricidade? Cozinhar a lenha, lá fora, mesmo nos dias mais frios e chuvosos, ou não ter água para ir à casa de banho? Até o simples carregar o computador para trabalhar é uma aventura.

Há um ano, fui desafiada a gerir uma comunidade mundial de milhares de jovens com uma colega: a Ranan, que vive e viveu toda a sua vida em Gaza. Tinha acabado de regressar da minha licença de maternidade do meu primeiro filho (e descoberto que estava novamente à espera de bebé) quando me foi atribuído um novo cargo na organização onde trabalho (Hult Prize Foundation), Gestora da Comunidade Global, e teria na minha equipa a Ranan — juntas iríamos gerir uma comunidade que chegou aos 300.000 participantes por todo o mundo.

Confesso que a minha primeira pergunta foi: como é que vou fazer isto acontecer? O desafio já é gigante por si só, mas coordenar tudo isto com alguém que vive em Gaza, debaixo de todos os horrores que vemos diariamente na televisão? O que lhe posso pedir que não seja proteger-se e proteger a sua família?

Comecei por marcar uma primeira reunião online, mas a internet falhou e não conseguimos falar. “Desculpa, Joana, sempre que está mau tempo ou eles bombardeiam, perdemos o acesso.” Confesso que, em toda a minha vida, esta foi uma resposta que nunca esperei ouvir. Tentámos encontrar outra solução: enviamos áudios e respondemos quando pudermos. E assim foi — e tem sido até hoje, maioritariamente. O mais assustador de tudo é mesmo ouvir os drones nos áudios e pensar: ela não está mesmo a salvo. O que estou eu a fazer, a pedir-lhe que trabalhe quando está sob ataque constante?

O meu maior medo sempre foi (e é, cada vez mais) a sua segurança e as condições em que vive. Raras foram as vezes em que não me perguntou se podia parar de trabalhar por umas horas porque havia água e queria tomar banho, lavar a loiça e armazenar o restante disponível. Para além do óbvio “claro, isso nem se pergunta, o trabalho pode esperar”, ficava sempre a imaginar como seria viver nestas condições. Viver sem água e sem eletricidade? Cozinhar a lenha, lá fora, mesmo nos dias mais frios e chuvosos, ou não ter água para ir à casa de banho? Até o simples carregar o computador para trabalhar é uma aventura, tem de recorrer a geradores comunitários — e ainda cuida da mãe doente, sendo a única pessoa da família (de catorze pessoas) que não perdeu o emprego.

Raras foram as vezes em que não me perguntou se podia parar de trabalhar por umas horas porque havia água e queria tomar banho, lavar a loiça e armazenar o restante disponível. Para além do óbvio “claro, isso nem se pergunta, o trabalho pode esperar”, ficava sempre a imaginar como seria viver nestas condições.

Há dias contava-me que tem estado doente e com a barriga muito inchada porque há três meses que só come comida enlatada, pois não há nada fresco disponível (e agora nem enlatado), ainda que tanto ela como as crianças da família fiquem sempre com fome depois de uma refeição, mas agradecem pela comida e rezam pelas outras famílias à sua volta. Falamos diariamente sobre estas condições miseráveis, sobre a “sorte” de ainda ter a casa de pé e não viver em tendas ou nos escombros, como tantos dos seus vizinhos. As crianças que vivem com ela estão desejosas de ir à escola – é o seu sonho, esse e o de não viver com medo, bem como de poder comer dignamente.

Confesso que tentei ao máximo não lhe dar muitas tarefas, porque sentia pena e não queria que sentisse o trabalho como um fardo impossível de suportar. Conversámos honestamente e disse-me: “Joana, eu amo o que faço, amo o meu trabalho. Tudo à minha volta está destruído. não há nada que me reste. Nem quase a esperança. Preciso de me agarrar ao que ainda me importa: Deus, a minha família, o meu trabalho e os meus amigos. Todos os dias vejo amigos, vizinhos, família a serem mortos, a minha terra a ser destruída — confesso que me falta a coragem para enfrentar mais um dia, mas este trabalho tem sido o meu escape da realidade. Temos trabalhado juntas para empoderar jovens de todo o mundo, temos feito uma dupla incrível, tenho-me divertido e tenho toda a vontade do mundo de dar oportunidades a quem não as tem, tal como fizeram comigo.”

E tudo isto é verdade. Já passei por algumas ONGs, por muitos contextos de trabalho e voluntariado, já conheci pessoas de todo o mundo, mas nunca nenhuma como a Ranan. Sempre com uma piada pronta, sempre com um sorriso, sempre com um “o que posso fazer mais?”, sempre com uma vontade imensa de viver e de trazer vida à vida dos outros, sempre a elogiar as minhas capacidades como chefe dela (ainda que as dela sejam muito mais louváveis), sempre a pensar no que podemos fazer para que a comunidade tenha uma experiência ainda melhor, sempre a pensar no próximo, não se esquecendo nunca de ninguém.

E então? Estivemos à altura do trabalho que nos foi proposto? Não só à altura, como com um feedback excelente por parte de todos os participantes. No meio de tudo isto, ainda conseguimos oferecer uma panóplia imensa de oportunidades a milhares de jovens (alguns deles em contextos parecidos ao da Ranan, no Sudão, por exemplo) que nos dizem que a nossa organização lhes deu um novo sentido à vida e que estão para sempre agradecidos.

O desafio que eu achei enorme tornou-se muito menor por poder ter o privilégio de trabalhar com uma pessoa absolutamente fantástica que todos os dias me faz querer levantar da cama para mais um dia de trabalho — ou simplesmente de amizade. Tornámo-nos grandes amigas e esta experiência tem sido uma constante aprendizagem. Todos os dias, a Ranan me agradece pela confiança e alegria no trabalho — um verdadeiro escape à triste realidade que enfrenta — e eu, todos os dias, lhe agradeço a amizade, a dedicação e o espírito de serviço que põe em tudo o que faz.

Obrigada pela tua resiliência, dedicação e paixão, Ranan. Ainda que estejas a passar pela pior de todas as experiências que um ser humano pode viver, estás a tornar o mundo de tantos outros milhares muito melhor. Que Deus te proteja — a ti, à tua família e a todos à tua volta. Que um dia possamos rezar juntas, como sonhamos, em pessoa, na mesquita de Lisboa e na primeira igreja onde entrarás, aqui.

(Uma fotografia de quando nos conhecemos, no Quénia, em 2022 — a primeira e única vez que conseguiste sair de Gaza.) 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.