Quem corre por gosto não cansa

Questiono-me se a pressa e o silêncio serão incompatíveis. Duas realidades antagónicas, irreconciliáveis como o azeite e a água.

O Outono chegou! As férias acabaram para os mais pequenos, os jovens iniciam um novo semestre; uns recomeçam o trabalho e aqueles para quem as férias de verão quase não existiram veem retomar a agitação própria do ritmo trabalhador. Começam outro tipo de conversas. As palavras “silêncio” e “paz” acompanham a migração das aves e fogem do nosso vocabulário, enquanto esperamos que regressem no próximo ano. Como num palco, o silêncio e a paz saem de cena e entram, ofegantes, a agitação e a pressa.

Questiono-me se a pressa e o silêncio serão incompatíveis. Duas realidades antagónicas, irreconciliáveis como o azeite e a água: por muito que nos esforcemos em misturá-los é inevitável que um se sobreponha ao outro.

É urgente aprofundar o significado do silêncio. Poderíamos defini-lo, sem mais, como a ausência de barulho. Mas não chega. É que este não é o silêncio amargurado depois de uma discussão, nem o da criança que se cala depois de ter feito uma asneira. Não é sequer o silêncio distraído de quem se ocupa com os seus próprios pensamentos. Esse seria o silêncio da terra ressequida, da qual nada se espera.

É urgente aprofundar o significado do silêncio. Poderíamos defini-lo, sem mais, como a ausência de barulho. Mas não chega.

O silêncio é um aliado da espera. É essencial à vida, como ao atleta que espera o sinal de partida. O silêncio, na vida espiritual, é o modo de esperar os sinais de Deus. Quando fazemos silêncio, damos tempo e espaço ao Pai, que nos segreda a sua Palavra. Assim, o silêncio cristão é um silêncio orante, ocupado com as coisas do Pai (Cf. Lc 2,49). É o chamado “santo silêncio”, que permite ouvir mais claramente a voz de Deus que convida à saída de si – à conversão.

Deus fala às almas silenciosas para que se tornem apressadas a servir. Um silêncio que se transfigura em pressa de que a Palavra escutada se faça carne. Já não é a correria de quem anda aos empurrões para chegar primeiro. É a pressa de quem vai ter com o irmão para servir e não para ser servido. Como escutamos no Evangelho: «Por aqueles dias, Maria levantou-se, foi apressadamente para a montanha, para uma cidade de Judá, entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel» (Lc 1, 39).

A correria do fogo por Deus marcou a vida de Maria, dos Apóstolos, de Paulo, de Inácio… As suas vidas ensinam que a escuta da Palavra de Deus provoca a urgência de descer; de ir ao encontro daqueles a quem Deus ama e quer revelar a sua salvação. Mas como?

Dar de comer a que tem fome
Dar de beber a quem tem sede
Dar pousada aos peregrinos

Vestir os nus
Visitar os enfermos
Visitar os presos
Enterrar os mortos

Ensinar os ignorantes
Dar bom conselho
Corrigir os que erram
Perdoar as injúrias

Consolar os tristes
Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo
Rezar a Deus pelos vivos e defuntos

Este é o modo de ser de Jesus, um modo de servir sempre antigo e sempre novo, a querer prolongar-se em cada um de nós. Estas catorze obras de misericórdia envolvem o corpo e o espírito. Enumerá-las soa ao sinal de partida do atleta, agora servo fiel que escuta, nestas palavras, a própria vocação.

Voltemos ao silêncio. Voltemos à pergunta inquietante capaz de iluminar o final de um dia, aquando do exame de consciência: «“Senhor, quando é que te vi? (…) Senhor, quando é que não te vi?”» (Cf Mt 25, 37. 44). E há de ser esse silêncio a conduzir-nos à pressa em Deus: «quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes». (Mt 25,40)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.