Uma manhã, levei um dos meus filhos para o escritório onde trabalhava. Não era suposto, mas esqueci-me de o deixar na escola (nesse dia alterei a rotina) e segui com ele estrada fora. Quando cheguei, por obra e graça do Espírito Santo, reparei que tinha um bebé de dois anos a dormir no banco de trás do carro. Entreguei-o na escola e não contei a ninguém. Também não o acordei. Ainda hoje tenho pesadelos quando me lembro deste esquecimento. Outra vez, um outro filho, resolveu esconder-se numa daquelas lojas que parecem armazéns. Procurei-o durante 15 minutos. Em desespero completo. E ele, conforme ia percebendo que a agitação aumentava, melhor se escondia e agachava entre as roupas. Foram 15 minutos de inferno que pareceram horas intermináveis.
Tenho mais histórias parecidas com estas mas calo-me para sempre ou arrisco uma visita da CPCJ. Estas chegam.
O Menino Jesus tinha 12 anos quando os pais se perderam dele (os meus tinham 2 e 4, vá). Ficou no templo com os doutores e ainda repreendeu os pais quando o encontraram. “Porque me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”
Imaginem, só. O desplante: “para casa e é já!”, teríamos dito. Já Maria e José, impecáveis, devem ter encolhido os ombros resignados com esta resposta: “Eles, porém, não compreenderam o que ele lhes dissera”, está escrito. E é só.
Mas vamos ao início: Maria e José só deram conta de que Jesus não os acompanhava ao fim de um dia de viagem: “Pensando que ele estivesse com os seus companheiros da comitiva, andaram o caminho de um dia e procuraram-no entre os parentes e conhecidos…”. Um dia. Conhecem alguém que não saiba por onde anda o filho durante um dia? Nem meia hora.
É quase impossível que uma criança de 12 anos esteja um dia desaparecida sem se dar conta de que ela está desaparecida. Nós sabemos. Nós, pais do século XXI, somos muito mais dedicados e atentos e sabemos onde eles estão em cada minuto. Até porque normalmente estão no quarto sossegados dentro do computador ou da PlayStation. Não há perigo de se perderem, de serem raptados ou de partirem a cabeça, portanto. Jesus, hoje, não teria hipótese de se escapulir.
Os nossos filhos são prisioneiros das nossas angústias, medos, inseguranças. Os telemóveis são as algemas que lhes damos no Natal – e eles deliram, por mais incrível que pareça – e permitem-nos saber a cada minuto onde eles andam, o que fazem, a que horas chegam, como vão e com quem estão. Estão sempre contactáveis – ou alteramos a palavra passe do Wi-Fi. E se não atendem, nem o amigo, nem a mãe do amigo, chamamos a polícia correndo o risco de sermos acusados de negligência. É complicado. Hoje, Jesus não teria conseguido ficar para trás e os doutores do Templo seriam para sempre ignorantes.
Depois temos os três dias. (Sempre três qualquer coisa: três dias para a ressurreição, Pedro negou Cristo três vezes e três, a conta que Deus fez). Passa pela cabeça de alguém que se demore três dias a encontrar um filho sem que isso abra os telejornais? Outros tempos, é certo, e o desespero foi certamente avassalador.
Eu estive quinze minutos na ignorância e bastaram esses 15 minutos para o céu desabar em cima da minha cabeça. Para conhecer o inferno da angústia e o desespero que vem da falta de esperança. Maria e José estiveram nisto três dias e ainda lhes pergunta Jesus por que o procuraram. No meu caso, quando finalmente se encontrou o meu filho, um senhor pôs-se à frente dele e com os braços esticados pediu-me serenidade: “Tenha calma que o menino não fez por mal”.
Demorei a entender esta leitura, que nos ensina quase tudo sobre educação, respeito, liberdade, esperança e confiança. Explica-nos ainda o que é a fé e quem devemos ser como pais e até como filhos – porque no fim Jesus “desceu com eles a Nazaré, e eras-lhes submisso”. Ora aqui está um bom adjetivo que só se aplica aos meus quando querem gomas ou o carro emprestado (sim, eles não mudam).
Hoje, os nossos filhos são parte da nossa angústia e uma pequena parte da nossa alegria. Quando pensamos demoradamente sobre eles, sobre quem são, como serão, o que lhes pode acontecer ou que escolhas farão, não é a alegria que nos ilumina, mas sim o medo. E há sempre razões para termos medo: se há uns anos aquilo que assustava os pais era terem filhos hippies e/ou comunistas; hoje a preocupação é que evitem as missas de rito antigo e/ou não votem no Chega.
Nós confiamos pouco. Achamos que depende tudo de nós, que somos os deuses dos nossos filhos. Serão maus alunos se não lhes fizermos os trabalhos, que serão segregados se não lhes vestirmos roupa de marca e que serão uns totós se não forem craques no desporto. Quantas vezes confundimos controlo com segurança? Quantas vezes escolhemos o controlo em detrimento da confiança e da liberdade?
E é isto a falta de fé e de esperança. Temos dificuldade em deixar que eles se revelem, que sejam. Maria e José passaram um dia sem saber de Jesus, sem saber onde ele estava, com quem estava ou se tinha comido fruta ao almoço. Confiaram.
Nós confiamos pouco. Achamos que depende tudo de nós, que somos os deuses dos nossos filhos. Serão maus alunos se não lhes fizermos os trabalhos, que serão segregados se não lhes vestirmos roupa de marca e que serão uns totós se não forem craques no desporto. Quantas vezes confundimos controlo com segurança? Quantas vezes escolhemos o controlo em detrimento da confiança e da liberdade? E quantas vezes deixamos de viver em alegria porque escolhemos o medo e a angústia? Quantos de nós vivem aqueles três dias que Maria e José viveram durante todo o tempo como pais? E o mais estranho é que hoje sabemos sempre onde eles estão, só que muitas vezes não sabemos quem são, o que pensam, o que os influencia.
Mas não é por sabermos onde estão e com quem estão que garantimos que estão bem. Sabemos que estão bem não por os controlarmos, mas por os conhecermos. Só conhecendo, podemos confiar e só assim conseguimos conciliar a liberdade deles com o nosso sono.
E os doutores ouviam Jesus. É verdade que nenhum dos nossos filhos é o Messias. Mas ouvimo-los? Quantas vezes o fazemos com atenção e tempo? Não é o que eles exigem, mas sim o que eles pensam, viveram, querem contar. Não há tempo. O nosso tempo está compartimentado entre trabalho, coisas várias e filhos. Os filhos não estão em todo o tempo, são um quadrado no calendário preso no frigorífico ao lado da ginástica. Além disso, eles têm mais é que ouvir. E quanto mais velhos, mais têm que nos ouvir porque já podem decidir. Um perigo. Quanto mais opiniões têm, mais opiniões temos nós sobre as deles.
Jesus tinha doze anos e ensinava. Quando eu paro e ouço e pergunto (raríssimo), aprendo com todos os meus filhos muito mais do que aquilo que eles aprendem comigo. E melhor ainda: conheço-os. Pois só ouvindo e perguntando é que os cativamos, ensinamos e aprendemos.
E sobre a fé? Foram três dias de angústia, de escuridão e de vazio. E quando Maria e José resolveram procurar em casa do Pai é que encontraram Jesus. Sobre a fé, aprendemos com Maria e José o caminho e onde procurar. Aprendemos o desespero da morte, da perda e a alegria da ressurreição e do encontro, três dias depois.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.