Puxados pelo fio de Ariadne no labirinto Covid

A mensagem fundamental é que precisamos de “Descentrar-se e transcender”, recordando também a Doutrina Social da Igreja, nomeadamente os princípios do Bem Comum, Solidariedade e Subsidiariedade: “a fraternidade é hoje a nossa nova fronteira"

É sempre com imensa satisfação que encontro sinais da pervivência da herança clássica na cena pública. Dir-me-á porventura alguém que não passa de um sintoma de deformação profissional, mas creio que, nos dias que correm, é sobretudo um acto de respeito e gratidão. Talvez os que apreciam o passado greco-latino tenham mais facilidade em reconhecer que não há nada de novo debaixo do sol, e que múltiplas gerações de humanos, antes e depois de gregos e romanos, deixaram testemunhos e criações que, decerto, nos ajudariam imenso nestes momentos difíceis. Tivéssemos todos a humildade de reconhecer que, para concretizar a nossa humanidade, não basta estarmos orgulhosamente entrincheirados no trono da ciência e da tecnologia, ostentando uma proficiência pedante e superficial, desdenhosos de civilizações construídas à volta da ideia da natureza, do divino e do belo.

Com efeito, há experiências, sentimentos, inquietudes, símbolos que nos unem, em todos os tempos e lugares; e nada consegue melhor do que a arte – em particular a literatura – transmiti-las e enriquecê-las sucessivamente.

Neste âmbito, o meu momento de satisfação mais substancial em bastante tempo ocorreu em meados do passado mês de Janeiro, pouco antes do início do presente confinamento, e teve um responsável inesperado: o Papa Francisco. Com efeito, chegou-me às mãos, ainda quente da imprensa, graças à generosidade do tradutor – o Pe. Manuel Losa, SJ, mestre e amigo –, a versão portuguesa (Sonhemos juntos, Editorial Planeta) da mais recente obra do Papa, produzida em parceria com o seu biógrafo, Austen Ivereigh, no contexto do confinamento da primavera de 2020. É, portanto, uma edição marcada pela sensação de urgência, e que se afigura absolutamente pertinente, pois podemos usá-la como guia nesta história que se repete, sem se perceber quando, e se, haverá final feliz.

Com efeito, há experiências, sentimentos, inquietudes, símbolos que nos unem, em todos os tempos e lugares; e nada consegue melhor do que a arte – em particular a literatura – transmiti-las e enriquecê-las sucessivamente.

No entanto, a obra não se reporta apenas à pandemia. Como assinalou Austen Ivereigh numa recente entrevista ao semanário Sol a propósito do lançamento de Sonhemos juntos, “esta crise dá-nos a oportunidade de vermos as coisas com mais clareza. […] Permite-nos ver melhor como organizamos a nossa sociedade, a política e a economia. Expôs as fraturas e as fraquezas da forma como vivemos juntos”. Através de Sonhemos juntos, o Papa envia-nos uma mensagem de esperança: a Covid é acima de tudo uma oportunidade de reflexão para a mudança, que Francisco usa para sublinhar o seu pensamento sobre realidades fundamentais, a que somos frequentemente indiferentes – mesmo quando não tão longínquas –, colocadas pela pandemia num plano ainda mais afastado. É o caso das guerras esquecidas, das privações das periferias, dos refugiados, das mudanças climáticas; mas também dos “caminhos nefastos que impedem o crescimento, a conexão com a realidade” e, sobretudo, “a entrada do Espírito Santo”: o narcisismo, o desânimo e o pessimismo.

Com efeito, para o Papa, a Covid assume diversas formas, tanto a nível individual como colectivo; existiu sempre e sempre reclamou um momento de paragem, reflexão profunda e mudança em direcção a um futuro melhor, inevitavelmente diferente do passado. A pandemia acaba assim transformada numa metáfora dos momentos de crise, que ele também viveu: entre os exemplos de “Covid pessoal”, encontramos David (pelo pecado), Sansão e Salomão (por descurarem o seu dom), … e Francisco (por uma fase de autoritarismo). Como todos eles fizeram, é possível parar, reflectir e transformar-se.

As três partes em que se divide a obra revelam as três etapas do processo de sonhar juntos nestes tempos de crise – “Um tempo para ver”, “Um tempo para escolher”, “Um tempo para agir” – que o Papa aproveita também para responder a incompreensões e críticas que rodearam algumas das suas iniciativas fundamentais – como os vários Sínodos –, por ele atribuíveis à ”consciência isolada” de alguns.

A mensagem fundamental é que precisamos todos de “Descentrar-se e transcender”, recordando também a Doutrina Social da Igreja, nomeadamente os princípios do Bem Comum, Solidariedade e Subsidariedade: “a fraternidade é hoje a nossa nova fronteira”.

A mensagem fundamental é que precisamos todos de “Descentrar-se e transcender”, recordando também a Doutrina Social da Igreja, nomeadamente os princípios do Bem Comum, Solidariedade e Subsidariedade: “a fraternidade é hoje a nossa nova fronteira”.

Mas Sonhemos juntos é também um tributo à experiência milenar e à palavra humana, assemelhando-se um manancial que brota, quais glosas, de sucessivas citações e referências artísticas e literárias, frequentemente ligadas à vida concreta. Francisco relaciona o sacro e o profano, o cristão e até o pagão, unidos como produtos do espírito humano e manifestações perenes da sua dignidade. Sonhemos juntos acaba por ser uma síntese do que somos, em que o prosaico do quotidiano se mescla com inquietações profundas, que a palavra, a música ou até a fotografia sintetizam e cobrem de beleza simbólica.

Tal processo transparece logo no próprio título da obra, um apelo esperançoso que une Isaías (Is 1, 18-20) e Hölderlin. “Vinde, falemos sobre isto. Se estais dispostos a escutar, tereis um grande futuro, mas se vos negais a escutar, sereis devorados pela espada.”, é a citação-alicerce bíblica, mote que Francisco continua, aproveitando a metáfora: “Há tantas espadas a ameaçar devorar-nos”, de que a Covid é apenas a mais propalada. Mas, em seguida, evoca um verso do poema Hyperion de Hölderlin, que costuma citar no dia-a-dia – “Onde está o perigo, cresce também o que nos salva.” – para potenciar a esperança. Unindo de algum modo os dois, escreve Francisco: “Vinde, falemos sobre isto. Atrevamo-nos a sonhar”.

A constante ligação ao quotidiano – quer o do passado, quase sempre sugerido por versículos da Bíblia, que reflectem a experiência dos hebreus; quer a do presente, da Roma do século XXI ou da terra natal do Papa, entre muitas – desponta logo nas metáforas bíblicas com que Francisco inicia o Prólogo, e servem para ilustrar a urgência da presente conjuntura: “Vejo este momento como a hora da verdade. Faz-me recordar o que Jesus disse a Pedro: Satanás quer-te «joeirar como o trigo» (Lc 22, 31). Entrar em crise implica ser joeirado”, pôr tudo em questão, ser posto à prova “como o fogo prova o vaso do oleiro (Sir 27, 5) ”. E dela “sai-se melhor ou pior; mas nunca iguais.”

A sensibilidade à beleza da criação – patenteada pela Laudato si, e constantemente evocada nesta obra –, estende-se às criações humanas que, pelo seu esplendor, dela se tentam aproximar, como “A Criação” de Haydn. O apreço pelo passado – começando pelo da própria Igreja, assente nas palavras da Bíblia e sobretudo de Cristo, mas também nas produções dos seus membros – é ilustrado por uma citação de Gustav Mahler: “A tradição não é o depósito de cinzas, mas a preservação do fogo”.

Entre as referências literárias, sobressaem Rabindranath Tagore, Os irmãos Karamazov e uma obra de Jorge Luis Borges a que já voltaremos. As citações em latim são frequentes, invocando máximas quase sempre imersas na milenar tradição da Igreja, como Quod omnes tangit ab omnibus tractari debet, ou o Fides quaerens intellectum de Sto Anselmo; para não falar de expressões mais ou menos canónicas como uiri probati e capax Dei, ou até e pluribus unum. Mais surpreendente é o gosto pela exploração da etimologia – por vezes comparada – das palavras, para explicar o seu sentido profundo: por exemplo, o grego aletheia face ao hebraico emet; syn-odos, ou a “tradução possível do grego perisseuo”. As referências clássicas são bastante comuns (o canto das sereias, ethos, oikos), é certo, mas mostram que, por exemplo, a fundação de Roma está tão presente na memória de Francisco quanto a história bíblica.

E é assim que chega o Epílogo, onde Francisco verbaliza a acção que devemos tomar para vencer as muitas Covids: “Descentrar-se e transcender”, que ele associa à “imagem do peregrino, alguém que se descentra e, assim, pode transcender.” Alguém que sai de sua casa e volta diferente, para uma casa que “também já não será a mesma.”

Mas o mais curioso é que o Papa ilustra essa peregrinação através da mitologia grega: “Há um tipo de caminhar para a frente, ao estilo do caracol, como o mito grego do labirinto em que entra Teseu”.  Ora, “do labirinto só se sai de dois modos: para cima, descentrando-te e transcendendo, ou deixando-te conduzir pelo fio de Ariadne”. Para nós, os novos Teseus, esse novelo é “a nossa criatividade para superar a lógica do labirinto, para nos descentrarmos e transcendermos”; e também “o espírito que nos chama a sair de nós mesmos”; e ainda os outros “que, como Ariadna, nos convocam e nos ajudam a encontrar saídas, a dar o melhor de nós mesmos” (e abra-se uma parêntesis para sublinhar a escolha de uma mulher como símbolo do guia, tópico destacado ao longo da obra).

O labirinto tem múltiplos sentidos: representa o caos confuso do mundo, onde tentamos fugir a numerosos minotauros – ou espadas, na metáfora de Isaías; mas também pode ser construído nas nossas mentes, pelo nosso próprio egoísmo e cegueira, que apenas desejam voltar ao que havia antes, “ignorando que, antes, também não estávamos bem”. Para enriquecer esta ideia de prisão mental e emocional, Francisco introduz novas camadas, ao evocar o “pesadelo” de tempos e espaços futuros que se interpenetram de modo inextricável, sem “possibilidade real de saída”, criado por Jorge Luís Borges na sua obra O jardim dos caminhos bifurcados – uma das várias onde pontifica o labirinto, um dos símbolos preferidos do grande escritor, obcecado pelo tema do tempo.

O labirinto foi representado não apenas pelas civilizações que nos precederam, mas também pela própria Igreja Católica – algo epitomizado pelo labirinto da catedral de Chartres, preservado desde a sua colocação nos inícios do século XIII.

Através desta longa evocação do labirinto, mesmo que ficando-se pela criação grega e por uma referência literária contemporânea, Francisco traz-nos à memória a sua longa tradição simbólica. O labirinto foi representado não apenas pelas civilizações que nos precederam, mas também pela própria Igreja Católica – algo epitomizado pelo labirinto da catedral de Chartres, preservado desde a sua colocação nos inícios do século XIII. Nesta extraordinária obra do engenho humano, dum tempo em que os símbolos eram cuidadosamente pensados e elaborados, o labirinto é objecto de uma recriação simbólica: com o seu percurso único e uma rosácea no centro – em paralelo com os maravilhosos vitrais, em que avulta a rosácea do Juízo Final –, representa a geometria sagrada da criação e os meandros da nossa peregrinação terrestre em busca da salvação. Assim, este símbolo da mitologia grega deixa de ser uma prisão mortal para se transformar no caminho para uma nova liberdade, verdadeira e transcendente. Contudo, fá-lo sem apagar a memória de Teseu, Ariadna e o Minotauro, visualmente ausentes em Chartres, mas profusamente representados em labirintos doutras igrejas, nomeadamente em Itália.

Mas não é este o derradeiro recurso à beleza dos símbolos literários. Francisco dá a última palavra do seu Sonhemos juntos ao poema “Esperança”, da autoria do poeta argentino Alexis Valdés, centrado na imagem da tormenta e do naufrágio colectivo. “Quando a tempestade tiver passado […]/ nos sentiremos ditosos/ simplesmente por estarmos vivos”, principia o poeta, que, depois de assinalar “Já não teremos inveja/ pois todos terão sofrido./ Já não teremos desídia/ seremos mais compassivos.”, conclui: “Quando a tormenta passar/ peço-te, Deus apiedado,/ que nos restituas melhores,/ como nos tinhas sonhado!”

Parece que a moda dos labirintos está a voltar, não apenas em contexto New Age, mas também no religioso, por propiciar a meditação e a descompressão, confirmando, mais uma vez, a frase de Mahler: “A tradição não é o depósito de cinzas, mas a preservação do fogo”.

 

Ps – A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.