Se os telemóveis servem para tudo e apenas marginalmente para fazer chamadas, os professores, nas escolas, parecem, igualmente, servir para tudo e também, marginalmente, para serem educadores
Contrariamente ao habitual fui, ao longo das últimas semanas, sendo assaltado por várias possibilidades temáticas para escrever este texto. Não me senti particularmente atraído por nenhuma das ideias, mas fui notando que todas elas se centravam em preocupações mais pessoais e profissionais. Acabei, portanto, por ceder a estas preocupações e, por isso, caro/a leitor/a, apelo à sua paciência e generosidade.
O tema surgiu em virtude de duas atividades que desenvolvi na semana passada e dos encontros que fui tendo com vários colegas de filosofia do ensino secundário. Estes contatos fizeram-me perceber que, mal comparado, os professores são como os telemóveis. Devo confessar que, conforme a minha irmã mais nova e as minhas sobrinhas insistem em dizer-me sempre que lhes telefono, os contatos atuais não se fazem por voz, mas por mensagens ou imagens. Consequentemente, dei por mim a pensar que os telemóveis são um equipamento que serve para tudo e, por vezes, pelo menos para os retrógrados como eu, e de modo muito raro, também servem para telefonar.
Numa formação que realizei com professores de filosofia do ensino secundário sobre a era da pós-verdade, uma colega enviou-me uma avaliação intitulada: “Porque é que a ‘treta’ ganha em toda a linha e ser professor de Filosofia é tão difícil e tão necessário: como ultrapassar a ‘treta’ e a ‘veritofobia’ usando o pensamento crítico / racional?”. Para além da delícia de título, que me fez recordar os das obras filosóficas dos séculos XVII e XVIII, o que mais me impressionou foi a constatação de que se, por um lado, há a frustração de ver o triunfo da conversa fiada, por outro, continua a vigorar o espírito de missão da tarefa educativa. O professor de Filosofia tem a vida difícil, mas é indispensável para ajudar os alunos a desenvolverem as suas capacidades e a tornarem-se seres humanos racionais e críticos.
As reflexões sobre o ensino são muitas e sobejamente conhecidas e não quero associar-me ao coro das ‘queixas’ de como os professores são tratados nas escolas. Os queixosos têm razão, mas, de momento parece-me mais pertinente ilustrar as dificuldades que fazem da vida do professor difícil, nomeadamente, a do de filosofia. A primeira, nem sempre é salientada. Contrariamente à maioria das profissões, os professores não veem imediatamente o resultado do seu trabalho. Na melhor das hipóteses, os sortudos, encontram algum aluno – 10 ou 20 anos depois – que lhes diz “o professor marcou a minha vida” ou “o professor ajudou-me a ser uma melhor pessoa”. E este facto não ajuda à valorização daquilo que os professores fazem. Se lhes pedimos no final do ano para demonstrarem os resultados do processo ou do projeto educativo que implementaram, acabam, provavelmente, por apresentar as mãos cheias de nada, visto não haver um produto final a apresentar.
A segunda dificuldade, ligada à primeira, é exposta pelo filósofo contemporâneo Alasdair MacIntyre. Para ele, o professor vive atualmente numa tensão entre dois conjuntos de crenças que são, em grande medida, incompatíveis. Por um lado, está integrado num sistema social e institucional que exige que os professores produzam mão-de-obra compatível com a economia atual. Nesse sentido, a igualdade não é propriamente uma prioridade, visto a economia carecer de pessoas com alto nível de qualificação – se queremos bons médicos, executivos de empresas e advogados –, com qualificação média – para manter os serviços, a indústria e a agricultura – e com baixa ou nenhuma qualificação – para os trabalhos ocasionais. A esta desigualdade económica contrapõe-se a meta da educação, particularmente a ideia de que a tarefa é não deixar qualquer criança para trás, a ideia de que se pretende fazer de todos os membros da sociedade pessoas reflexivas e independentes.
Contudo, alerta MacIntyre, “[…] se essa educação for bem-sucedida, tornará, numa medida notável, aqueles que dela tiram proveito incapazes de participar de forma cumpridora e bem-sucedida na ordem social e económica. Porque terão aprendido a fazer perguntas sobre as atividades apresentadas por essa ordem que é importante – do ponto de vista dessa ordem – não fazer” (Alasdair MacIntyre; Joseph Dunne – “Alasdair MacIntyre on Education”, p.2). Por outras palavras, o sistema que defende educativamente a centralidade do pensamento crítico-reflexivo é a mesma que não pretende que as pessoas pensem no sentido das atividades que praticam quotidianamente. A começar pelos próprios professores, imersos em burocracias e atividades que pouco ou nada têm a ver com a sua vocação e missão de educadores.
Daí humoristicamente a minha comadre filósofa ter, já há muitos anos, alterado o seu cartão de visitas. Onde antes, por baixo do nome, se lia professora de Filosofia, passou a ler-se ‘técnica de grelhados’. Quem a conhece, imagina que finalmente abriu o seu restaurante, sobretudo se se tem em conta que é uma cozinheira de mão-cheia, com gosto e apetência para a arte. Porém, não. Transformou-se numa ‘técnica de grelhados’ por passar o dia na escola a preencher grelhas, relatórios e todas as restantes burocracias que tomam a maior parte do seu dia. Na designação escolhida é notável quer o facto de reconhecer que não é, no dia-a-dia, vista como uma professora e que a sua tarefa se reduz à produção de dados. Substitui-se a aparente mãos-cheia-de-nada do professor educador, pelos dados estatísticos dos rankings, das percentagens de aprovação e da tonelagem de papelada produzida.
Curiosamente, o que desaparece do processo é a preocupação com a educação. A formação de ser humanos pensantes, independentes e que aspiram a encontrar sentido e orientação na sua vida. Os professores transformam-se em telemóveis. A função principal secundariza-se. Se os telemóveis são (foram?), consoante sugere o nome, telefones móveis com a tarefa primordial de permitir telefonemas, os professores são (foram?) agentes educativos com a tarefa de contribuir para o desenvolvimento das capacidades dos alunos de modo a levá-los a tornarem-se adultos capazes de compreender as atividades que desenvolvem e a procurarem, criticamente, o sentido da sua existência. Mas a natureza de um e de outro parece ter-se alterado radicalmente. Se os telemóveis servem para tudo e apenas marginalmente para fazer chamadas, os professores, nas escolas, parecem, igualmente, servir para tudo e também, marginalmente, para serem educadores.
Nesse sentido, caro/a leitor/a, se não vê os seus atuais, ou passados, professores como telemóveis – meros instrumentos para a produtividade e consumo do conhecimento mínimo e indispensável para a obtenção de um grau ou título que lhe garanta acesso ao mercado de trabalho –, se, de algum modo, contribuíram para a sua formação pessoal – emotiva e cognitiva –, quando passar por eles, diga-lhes algo. Agradeça o que fizeram por si. O título pode levá-lo longe, mas a pessoa em que se tornou levá-lo-á mais longe ainda. Eu começo: agradeço às educadoras da Creche Mãe, à minha professora primária, aos professores do INA e aos professores da FFCS. Obrigado por tudo o que fizeram por mim.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.