Professores, bens e vocações

A sala de aula é onde a resistência às forças redutoras dos professores a telemóveis se faz sentir de modo mais claro

Estamos em época de regresso ao trabalho. Para muitos é o regresso à escola, com tudo o que aí se encontra envolvido. É o momento de colocações, reuniões e preparação de aulas. Muitos dos problemas estruturais e conjunturais existentes permanecem e, por isso, a ideia de que o atual ano letivo será muito melhor do que os anteriores não passará, com grande probabilidade, de uma ilusão. Basta abrir os jornais para se constatar que o arranque do ano escolar está já pejado de dificuldades e obstáculos.

Estas palavras ligam-se diretamente ao desafio que alguns amigos e colegas me levantaram a propósito de um texto que escrevi aqui para o Ponto SJ, onde comparava professores e telemóveis. O desafio lançado não diz respeito à correção ou incorreção da minha leitura, antes à falta de propostas de solução ou de formas de enfrentar a marginalização e maquinização a que o ensino e a vida letiva parecem ter sido votadas. “Como resistir às forças que me querem transformar num professor-telemóvel?”, perguntam-me.

Penso que, em primeiro lugar, é preciso abandonar a fantasia de que há uma solução única e perfeita, a ser imposta de cima-para-baixo, que, de uma vez por todas e para sempre, resolverá todas as dificuldades. Os pontos de vista excessivamente abstratos e idealizados pecam por não terem aplicabilidade prática. O caminho é bastante mais simples e paroquial. A minha orientadora pedagógica ensinou-me no primeiro dia que para se ser bom professor é preciso ter condições: profissionalismo, profissionalismo e profissionalismo.

Por outras palavras, à vocação deve associar-se uma capacidade de trabalho que permita desempenhar as várias funções da profissão de professor. Desde as mais aborrecidas (e.g., preencher livros de termos e grelhas) às mais desafiadoras e interessantes (e.g., lecionação). Geralmente os professores não têm grande poder e controlo na organização da escola, do currículo e da carreira, estando muitas vezes à mercê de administradores mais preocupados com rankings e estatísticas do que com a criação de comunidades de ensino-aprendizagem.

Há muito na escola e no ensino que é desmotivante e depressivo e, por isso, é normal que cada um dos que lá trabalha se sinta afetado pela degradação da profissão. Há cada vez mais burocracia e menos contacto com os alunos. O ideal seria que sentíssemos e vivenciássemos a instituição de ensino em que trabalhamos como a nossa instituição. Um espaço no qual nos sentimos em casa. Porém, nem sempre isto ocorre e, portanto, é importante recordar que a sala de aula pode e deve ser a nossa sala de aula. O lugar no qual, malgrado os programas e ritmos de aula impostos exteriormente, o professor tem espaço para exercer a sua missão de educador.

A sala de aula é onde a resistência às forças redutoras dos professores a telemóveis se faz sentir de modo mais claro. Aí podem manter o foco nos bens próprios da sua atividade, recusando-se a transformarem-se em meros técnicos ou funcionários burocráticos. Na sala de aula podem criar o género de comunidade que fornece redes de apoio e os bens necessários para o florescimento de todos (particularmente para os mais frágeis).

Um ponto de partida possível passa pelo abandono de uma imagem muito comum acerca dos alunos. A de que são desinteressados. Rejeito esta imagem, quer porque os meus professores diziam o mesmo a meu respeito, quer porque está errada. Os alunos não são, na sua maioria, desinteressados. Eles não têm, muitas vezes, é interesse em aprender o que lhes queremos ensinar. Desde logo, porque não escolheram as disciplinas, nem os professores, nem os colegas. Os alunos têm interesses próprios (sejam eles os da última trend do TikTok, sejam acerca de bandas musicais, clubes de futebol ou filmes) e cativá-los para o que estamos a trabalhar é uma das funções primeiras e prioritárias do ensino.

Na mesma linha, deve rejeitar-se a ideia de que a maioria dos alunos é desinteressante. Quando há uma atitude de escuta e descoberta da sua vida, é fácil constatar que muitos têm vidas bastante interessantes. Realizam atividades fora da escola (seja dança, canto, praticar desporto, etc.), integram outras comunidades (religiosas, estéticas, de lazer, etc.) ou desenvolvem hobbies. As suas vidas são complexas.

Conheço muitos e bons professores que realizam este processo de aproximação dos alunos de forma brilhante e empenhada, que se preocupam em fornecer-lhes as melhores condições possíveis para o desenvolvimento das suas capacidades reflexivas. Com isso, colocam-nos no caminho do crescimento pessoal completo (intelectual e emocional). Para além disso, quando se constroem este género de comunidades, nas quais a liberdade, a responsabilidade e o respeito imperam, emergem casos que enriquecem as vidas de todos quantos neles colaboram. E aqui já não temos o professor-telemóvel.

Conheço muitos e bons professores que realizam este processo de aproximação dos alunos de forma brilhante e empenhada, que se preocupam em fornecer-lhes as melhores condições possíveis para o desenvolvimento das suas capacidades reflexivas. Com isso, colocam-nos no caminho do crescimento pessoal completo (intelectual e emocional). Para além disso, quando se constroem este género de comunidades, nas quais a liberdade, a responsabilidade e o respeito imperam, emergem casos que enriquecem as vidas de todos quantos neles colaboram. E aqui já não temos o professor-telemóvel.

Não me tenho por exemplo ou protótipo de bom professor, mas conto uma pequena história ilustrativa do que estou a tentar transmitir aqui. Desde que iniciei a lecionação da disciplina de Lógica Informal e Argumentação, tenho, quase todos os anos, promovido, com os meus alunos, uma competição lógica. Vários objetivos estão presentes nesta atividade. É um modo de tornar mais atrativos alguns processos avaliativos, promover um lado competitivo que faça com que os alunos ‘puxem’ uns pelos outros e introduzir uma dimensão lúdica nas aulas. É uma atividade bem acolhida na qual o vencedor é recompensado com um prémio (normalmente um livro de filosofia e um pequeno troféu alusivo à competição).

Devo indicar que a avaliação nesta disciplina é feita segundo moldes específicos. Dado que se pretende desenvolver as capacidades de raciocínio e argumentação, as avaliações são realizadas na sala de aula em regime de grande liberdade. Os alunos podem consultar-se uns aos outros, os apontamentos ou a internet. Apenas não podem consultar o professor. Com isso dialogam e discutem entre si o modo adequado de diagramar um argumento ou a identificar e atacar uma falácia lógica. A finalidade é ajudar a refletir e a desenvolver uma sensibilidade lógica e não a memorizar conteúdos (facilmente acessíveis nos livros).

Com isto tenho criado uma pequena comunidade de aprendizagem na qual os alunos dialogam entre si e com o professor com vista à solução dos desafios que lhes são colocados semanalmente.

No ano letivo passado, esperava, à luz dos anos anteriores que os alunos, durante o desafio, ‘perdessem’ um pouco do espírito colaborativo e se tornassem um pouco mais competitivos entre si. De facto, isso ocorreu na primeira atividade da competição. Porém, e para minha surpresa, duas alunas, que sempre trabalharam juntas, voltaram a fazê-lo a partir da segunda atividade. Quando indiquei a uma delas que estava em terceiro lugar na competição e a colega em primeiro, a sua resposta foi lapidar: “sempre nos ajudamos e o que nos interessa é responder bem ao desafio que o professor nos levanta”. Quando isto ocorre, percebe-se que os alunos já não estão preocupados com bens externos à disciplina (prémio do concurso ou a classificação final), mas estão focados nos bens internos à mesma (o que preciso fazer para me tornar um bom praticante de lógica informal).

O sucesso destas alunas foi igualmente o meu sucesso. Durante estas férias pensei o que devo fazer para amplificar e reforçar este caminho, pois resistir ao perigo de decair-se em professor-telemóvel passa por defendermos intransigentemente a nossa missão de sermos professores. Se for possível ao nível institucional, tanto melhor. Se não for possível, que o seja na nossa sala de aula.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.