A insistência dos docentes e investigadores de Estudos Clássicos em afirmar a perenidade da cultura Greco-Latina, salientando a sua extraordinária capacidade de representar o humano, pode parecer a alguns uma tentativa desesperada de se manterem relevantes. No entanto, uma breve análise fundamentada permite verificar que, apesar do deslumbramento criado pelos avanços da tecnologia, a essência da Humanidade não mudou, e até os detalhes potencialmente datados do passado podem encontrar paralelos no presente. Mais ainda, e mesmo colocados todos os caveats e mutatis mutandis, acabamos por verificar que a experiência contemporânea permite distinguir, em histórias aparentemente gastas com interpretações e recriações sucessivas, novas camadas significativas. O passado enriquece o presente, mas o presente também permite um enriquecimento da vivência passada.
Decerto acompanhando este ponto de vista, um congresso recentemente realizado na Universidade de Aveiro centrou a sua atenção no mito de Narciso, protagonista de sucessivas reinterpretações no campo das artes e da literatura. Narciso desperta nos dias de hoje um interesse mais vasto: trata-se provavelmente da figura mais nomeada no contexto dos media para caracterizar a vida social deste início de milénio, tendo em mente sobretudo os membros da chamada Generation Y (ou Millennials) e da subsequente Generation Z. De facto, embora a maioria da população ocidental tenha acesso à Internet e às redes sociais, os nascidos a partir da última década do século XX foram marcados quase desde a nascença pela omnipresença e crescente multifuncionalidade do telemóvel e da Internet. Poder fotografar-se – vendo-se ao espelho, portanto – em qualquer circunstância, e de imediato exibir essa imagem urbi et orbi do modo que se achar melhor é uma das mais apreciadas funções dos dispositivos móveis. Contudo, vem com custos associados, como a experiência diária e os media nos mostram. Esta exibição massiva, excessiva e com frequência pouco ou nada real pode originar um feed-back desagradável; os efeitos na construção – auto e hetero – da imagem pessoal dos utilizadores, e o impacto respectivo na sua sociabilidade e bem-estar podem ser muito negativos. A pergunta que surge constantemente é: quais serão os efeitos a médio e longo prazo? A prevalência do que a Psiquiatria chamou “distúrbio narcísico da personalidade” – objecto de complexo debate, que levou à sua exclusão da edição mais recente da “bíblia” dos psiquiatras americanos – irá aumentar e associar-se a patologias mais graves? E o que sucederá com a incidência dos estados depressivos?
Quando se considera o protagonismo actual de Narciso, parece que a ninfa Eco, vítima da insensibilidade do belo jovem, teve uma posteridade menos brilhante: pelo menos, não é referida com frequência nas crónicas sobre os narcisos actuais.
Quando se considera o protagonismo actual de Narciso, parece que a infeliz ninfa Eco, vítima da insensibilidade do belo jovem, teve uma posteridade menos brilhante: pelo menos, não é referida com frequência nas crónicas sobre os narcisos actuais. Creio, contudo, que a sua figura proporciona leituras particularmente interessantes. Aliás, a história dos dois merece uma breve visita, para se verificar a sua incrível actualidade, seguindo, naturalmente, a versão mais marcante, contada por Ovídio nas Metamorfoses, dois mil anos atrás.
Desde logo, o Narciso ovidiano (Met., 3, 339-510) é o protagonista de uma metamorfose e responsável pela de Eco: ele transforma-se numa flor branca e amarela, o narcissus poeticus; ela, numa reverberação pétrea, típica dos lugares ermos. A trágica ruína do jovem caçador – sim, ele era, aos seus dezasseis anos, um stalker de animais tão obcecado como eficiente, o que o torna pouco ecológico –, causada por um evidente narcisismo, é anunciada à sua pobre mãe pelo principiante Tirésias com palavras adequadamente ambíguas: chegará a uma idade avançada “se não se conhecer a si próprio” (v. 348). O adivinho reportava-se a um conhecimento apenas superficial, completamente distinto do “conhece-te a ti mesmo” inscrito no templo de Apolo em Delfos. Incapaz de sair da sua auto-suficiência, mesmo antes de se “conhecer” no espelho das águas, desprovido de empatia e simpatia, Narciso praticava o que poderíamos chamar, em termos actuais, um ghosting geral: ignorava, por vezes com acinte, todos os que se apaixonavam pela sua extraordinária beleza, mas estava certo de que era irresistível. Se Eco implodiu de dor, tornando-se num eco, outros amaldiçoaram-no pela arrogância injusta. O castigo divino a esta evidente hybris, mais narcísica que todas as outras, não se fez esperar e seguiu a linha da pena de Talião: fê-lo amar e “nunca possuir o ser que ama”, espelhando a pobre Eco, que tentara abraçá-lo em vão (v. 405). É neste contexto que ocorre o episódio da pausa durante uma caçada e do arrebatamento pela imagem reflectida nas águas. Na versão das Metamorfoses, o belo Narciso fica como petrificado, “incapaz de se mexer”, qual “mármore de Paros” (vv. 418-419), com todo o seu ser concentrado no olhar. Ainda não podemos falar numa espécie de selfie constante, pois, de início, o efebo está convencido de que contempla alguém distinto de si. Só depois de expressar veementemente a sua dor por não conseguir alcançar a criatura reflectida pelas águas é que Narciso vê “realmente visto”: “Oh! Mas ele sou eu! Percebi!” (v. 463). A indiferença absoluta que revelava na relação com os outros tem agora como reverso um bloqueio do instinto de sobrevivência, que o leva a ignorar as necessidades vitais: como um adicto, ele não come, não bebe, não descansa. À consequente fragilidade junta-se o desvanecimento irreversível da beleza que constituía a razão de viver de Narciso; a identificação com a imagem das águas acentua-lhe a certeza de que a morte de “ambos” é inevitável. Os seus momentos finais são terríveis: quando o reflexo desaparece momentaneamente devido às lágrimas caídas na água, Narciso automutila-se em desespero, acentuando a destruição da sua beleza; ao contemplar os estragos, agoniza até desfalecer e transformar-se numa flor. Mas nem depurado pelo sofrimento Narciso tem redenção: até enquanto caminha junto às águas sombrias dos Infernos, ele continua a buscar o reflexo da sua beleza.
Este Narciso obcecado com a sua imagem e com o ecrã das águas, qual adicto às selfies e aos jogos electrónicos, é pertinentemente acompanhado pela graciosa figura de Eco no enquadramento contemporâneo. A ninfa era generosa, mas esse traço simpático, que a afasta radicalmente de Narciso, esteve na origem da sua desgraça. A sua tentativa de distrair Juno, quando esta perseguia as ninfas assediadas pelo omnipotente Júpiter, foi responsável pela perda da sua voz individual. Eco deixou de poder expressar os seus pensamentos e passou a apenas repetir os dos outros. Essa perda da voz própria acentuou a agressividade da rejeição por parte de Narciso, mas é evidente que nem a mais sedutora mensagem poderia levá-lo a abrir-se a alguém. Simbolicamente, é ela que tem a última palavra, ao repetir o “Adeus!” com que o agonizante efebo se despede do mundo superior (v. 501). Esta reverberação demonstra que ela não tinha perdido a sua essência compassiva, nem tão pouco o amor que a consumiu, sem lhe tirar o altruísmo, até a metamorfosear em pedra dúctil à voz dos outros. Quem sabe se um deus justo não poderia tê-la recuperado para o mundo dos vivos, de modo a manter essa humanidade profunda, disfarçada pela sua imagem de ninfa dos bosques.
Eco e Narciso, mutatis mutandis, parecem o par representativo de bastantes utilizadores das redes sociais: ele apenas se vê a si próprio; ela, mesmo tendo ideias generosas, vê-se obrigada pelas circunstâncias a fazer like e a replicar o pensamento superficial e fragmentário dos outros, sem o poder discutir; entre os dois – um cego e um mudo – , o abismo da incomunicabilidade. E quem será a vingativa Juno?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.