A transformação acelerada da ordem internacional, a importância crescente que a União Europeia (UE) tem e quer ter na política internacional e a reorganização do mundo em blocos cada vez mais antagónicos obriga a repensar a política externa portuguesa. O que nos importa será o mesmo de sempre: preservar a existência e o futuro de Portugal e garantir a sua independência. O resto, mesmo que fundamental, é instrumental. Mas, se o essencial é o de sempre, as circunstâncias são substancialmente diferentes. Como é que uns (os nossos interesses) e outros (o contexto internacional e a integração na UE) se compatibilizam nas circunstâncias actuais? Com pensamento estratégico, antes de mais.
Estamos longe de saber como vai ser o mundo e a ordem internacional nos próximos tempos. A derrota ou vitória russa na Ucrânia terá resultados completamente diferentes na ordem e segurança europeias. Uma súbita decisão chinesa de invadir Taiwan tornaria tudo o resto secundário e tudo mais perigoso. Uma reeleição de Trump obrigará a Europa a assumir mesmo maior responsabilidade pelo seu futuro e pode, além disso, ver os Estados Unidos traírem os ucranianos e os europeus em acordos com Putin, com quem Donald Trump se entende melhor do que com alguns líderes na União Europeia. Na competição por acesso a matérias primas raras, a Europa abrirá as fronteiras ao comércio com alguns países, mas na corrida pela reindustrialização, fechará a outros. E internamente tenderá a deixar que os Estados compitam entre si na atribuição de apoios às suas empresas preferidas.
A UE há-de alargar-se, mesmo que a várias velocidades, para expandir a sua protecção e influência regionais, alterando a geografia da União e as escolhas orçamentais. O que tem consequências para quem depende mais do orçamento do que do mercado europeu, como é o caso de Portugal.
A UE há-de alargar-se, mesmo que a várias velocidades, para expandir a sua protecção e influência regionais, alterando a geografia da União e as escolhas orçamentais. O que tem consequências para quem depende mais do orçamento do que do mercado europeu, como é o caso de Portugal.
Há ainda duas transições em curso que têm dimensões externas e consequências internas. A transição verde é feita impondo investimentos (custos) à produção industrial e ao consumo. Correndo o risco de alterar o valor interno de certas indústrias. Fala-se da necessidade de trazer de volta para a Europa produções como a dos painéis solares, mas assiste-se com alguma inércia e mesmo entusiasmo ao enfraquecimento de outras. O caso da indústria automóvel é exemplar. A rápida eletrificação está a coincidir com a substituição das marcas liderantes no mercado europeu, que vão deixando de ser europeias para ser americana e chinesa. O que tem consequências num mundo onde a geopolítica é geoeconomia e num país, como Portugal, onde a participação na cadeia de valor da indústria automóvel tem grande importância económica.
A transição digital diz-nos pouco no plano industrial. A Websummit tem valor, mas não faz de Portugal a capital do digital, nem nada que se pareça. Pode ser que Lisboa consiga continuar a atrair talento e investimento, mas o maior desafio europeu no ecossistema das start-ups é conseguir que fiquem do lado de cá do Atlântico quando começam à procura de dinheiro a sério. (E temos outro problema: convivemos mal com o necessário falhanço de alguns projectos. Como se o empreendedorismo fosse sempre uma história de sucesso ou, se não for o caso, uma história de apoio público.)
Finalmente, o investimento estrangeiro. Portugal tem precisado do dinheiro chinês. A Europa quer menos investimento chinês no que possa ser estratégico. E em breve pode querer menos de outras geografias, também, se algumas se mostrarem mais alinhadas com Pequim do que com Washington, Londres e Bruxelas. E menos transferência de tecnologias críticas, mas isso, infelizmente, não é um problema que corramos o risco de nos preocupar.
Onde fica Portugal no meio disto tudo?
Houve um tempo em que as nossas maiores preocupações em matéria de política internacional e União Europeia passavam por África, Brasil e Estados Unidos. Garantir apoio à cooperação e ao desenvolvimento dos Palops, apostar no comércio com o Brasil, trabalhando para que o acordo com o Mercosul fosse adiante, e manter a relação transatlântica, nomeadamente a NATO, no centro da política internacional da União Europeia. Tudo isso se mantém actual. Mas há muito mais que isso.
A relação da UE com a Rússia importa-nos? O suficiente para defendermos que se gaste o que for necessário na defesa da Ucrânia? Sim. E, por enquanto, as sondagens dizem que os portugueses concordam. Mas o preço que temos pago ainda é difuso. Será que percebemos a centralidade do tema para o nosso interesse enquanto país que depende da relevância internacional da UE e, a prazo, do seu papel na segurança regional?
A transformação da relação com a China tem impacto em países com investimento chinês em sectores críticos. Qual será a consequência das transformações em curso nas nossas relações com Pequim?
A transformação da relação com a China tem impacto em países com investimento chinês em sectores críticos. Qual será a consequência das transformações em curso nas nossas relações com Pequim? Haverá pressão para que sejamos desalinhados com o resto da Europa? Haverá represálias?
Se a NATO exigir maior investimento europeu, temos orçamento para isso? Ou passaremos de uma dependência americana para uma dependência franco-alemã? E a relação com o Reino Unido? Somos dos que mais se deveriam importar com o alinhamento com os britânicos em matéria de segurança e defesa. Os alemães compreendem essa necessidade. Os franceses, nem tanto.
As energias, inclusive financeiras, que a Europa despende com o tema das migrações é compreensível e terá de ser crescente. E, sendo importante para a Europa, tem importância para Portugal. Mas as migrações e os fluxos que preocupam a Europa não são um problema central para Portugal. A serem, é sobretudo no caso de Marrocos, que é o nosso vizinho extra-europeu que está mais perto e de quem devíamos ser próximos.
Um Brasil ambicioso e pouco alinhado com o Ocidente, uns Estados Unidos menos fiáveis e uma política de cooperação da União Europeia que exige capacidade financeira do lado dos privados que querem actuar nos mercados dos países africanos, alteram radicalmente aspectos essenciais e permanentes da nossa política externa.
Entramos em 2024 com um mundo em mudança, uma Europa a querer mudar o seu papel e lugar no mundo e com pouca clareza sobre as consequências disso tudo para Portugal e, portanto, com pouca reflexão pública sobre como isso nos impacta e como devemos responder. Temos muito que pensar. E fazer.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.