Num tempo sabático que pude gozar e em que pude crescer, vivi um ano e meio no campo. Parte desse período foi passado num lugar de uma vila portuguesa numa casa de família que herdámos do meu avô. Engenheiro técnico agrário, deixou para cuidarmos um terreno que, entre outras coisas, tem árvores de fruto como oliveiras, figueiras, pereiras, ameixeiras, cerejeiras, macieiras e laranjeiras. Quando era mais nova não dava a importância que hoje dou a estas árvores de fruto e a esta terra, mas ter vivido ali uma temporada permitiu-me observar, experimentar e comer a beleza da revelação das quatro estações na natureza e isso transformou a minha relação com este lugar. Noutro dia falávamos em família da poda de algumas destas árvores, e tomávamos a decisão de pedir este trabalho a um casal que vive ali perto. Falávamos do calendário, dos custos, quando o meu pai partilhou que há muitos anos que acha que estas árvores deveriam ter sido plantadas mais perto de casa para o acesso ser mais fácil e beneficiarmos mais dos seus frutos. Questionava até se podando as árvores e fazendo este investimento alguém iria comer aqueles frutos. Importa dizer que hoje em dia todos vivemos em sítios diferentes, nem sempre lá vamos tanto como gostaríamos, e hoje, com ovelhas, ir até àquelas árvores implica passar três portões, contornar as fezes das ovelhas, e no inverno andar na lama. Perante este comentário do meu pai, senti-me impaciente porque achei que essa ideia não nos levaria a lado nenhum, uma vez que elas estão de facto plantadas mais longe de casa. Além disso, podemos fazer um esforço por sincronizar as nossas idas com a época da colheita e contrariar a tendência de ficarmos apenas pela zona que está mais próxima de casa. Mais, dizia ao meu pai que ao longo do ano em que ali vivi tinha descoberto uma nova alegria e prazer em comer de árvores que vivem e crescem há tantos anos numa terra que nos foi confiada.
Esta história serve de contexto para a reflexão que quero propor em tempo de preparação para o Natal, e ajudou-me a ligar vários pensamentos e intuições que têm surgido na minha experiência pessoal com um dos quatro princípios proposto pelo Papa Francisco: a realidade é superior às ideias. O que o meu pai diz tem sentido – as árvores podiam ter sido plantadas mais perto de casa como fizeram alguns dos nossos vizinhos – e eu podia ter acolhido melhor essa perspetiva crítica se não estivesse tão focada na minha visão. E o que eu disse sobre ser um esforço que vale a pena, sobretudo porque fiz experiência recente disso, também tem sentido. Mas para lá do que dizemos nós, ou melhor dizendo, na raiz do que dizemos nós, está a realidade. E a realidade é que o meu avô, por alguma razão que se calhar na altura fez mais sentido do que as razões que nós agora enunciamos, plantou ali aquela linha de árvores de fruto. E perante isso, há escolhas a fazer: cuidar das árvores e recolher o fruto com tudo o que isso implica (custos, trabalho, esforço), ou insistir no ideal – elas deviam estar mais perto de casa – e deixar as árvores onde estão, sem cuidar delas e sem que ninguém colha os seus frutos. Ou, arrancar as árvores e transplantá-las, ou ainda um disparate maior arrancar aquelas árvores que levaram anos a crescer, deitá-las fora e plantar outras perto de casa. Como vêem, podemos facilmente oscilar entre acolher a realidade sem espírito crítico, ignorá-la ou até negá-la! Quantas vezes nos ocupamos mais da ideia que temos sobre como algo deveria ser e menos com a realidade do que é? Quantas vezes nos fixamos a uma ideia construída sobre nós e ficamos presos ao sofrimento de não correspondermos? E quem já se sentiu a lutar com o facto de a sua vida não corresponder à ideia que tinha para a mesma? Ou quem é que nunca idealizou alguém para logo perceber que ao ocupar-se da ideia não tinha visto quem é verdadeiramente aquela pessoa?
Quantas vezes nos ocupamos mais da ideia que temos sobre como algo deveria ser e menos com a realidade do que é? Quantas vezes nos fixamos a uma ideia construída sobre nós e ficamos presos ao sofrimento de não correspondermos? E quem já se sentiu a lutar com o facto de a sua vida não corresponder à ideia que tinha para a mesma? Ou quem é que nunca idealizou alguém para logo perceber que ao ocupar-se da ideia não tinha visto quem é verdadeiramente aquela pessoa?
Sinto que esta é uma dicotomia que se abre muitas vezes na nossa existência: olhar a realidade, lê-la e agir a partir daí, ou partir da ideia para tentar determinar a realidade. E alguém poderá dizer: mas espera lá, onde fica o espaço para o sonho, para os ideais? É suposto resignar-me à realidade? Não se trata de resignação nem de preguiça, pelo contrário, trata-se de ler mais fundo as ideias e os sonhos para poder destrinçar o que é importante e assim agir. No limite, trata-se de nos abrirmos à possibilidade de que a nossa vida seja transformada num processo colaborativo com os outros e com Deus. No entanto, se insistirmos que a ideia é mais importante do que a realidade poderemos ficar presos ao idealismo e ao perfeccionismo, até às ideologias, que nos fecham em nós e que nos criam pressão e sofrimento. “Se não me tivesse acontecido aquilo eu seria feliz”, “se comprar aquilo ficarei melhor”, “quando aquela pessoa for outra a nossa relação será possível”, “quando eu for boa pessoa serei amado”, “quando estiver sem feridas poderei amar”, são frases que refletem ideias que podem fechar-nos à possibilidade de nos conhecermos a nós e aos outros, e de transformar verdadeiramente a realidade. Por isso, precisamos de nos exercitar no acolhimento da realidade para gozar o sabor do presente, mesmo que o sabor seja amargo ou simplesmente diferente do desejado. O foco excessivo no que não foi, no que não é e no que ainda não é, pode tirar-nos a capacidade de re-conhecer o que já é e de encarnar na vida que já é nossa! E isto vale para a nossa vida pessoal, para as nossas relações, incluindo com Deus, mas também para a nossa vida em Igreja. A proposta de um caminho de vida não acontece sem o acolhimento da realidade, e a nossa vida em comunidade não floresce se não nos reconhecermos como somos.
O foco excessivo no que não foi, no que não é e no que ainda não é, pode tirar-nos a capacidade de re-conhecer o que já é e de encarnar na vida que já é nossa!
Mas porque é que derivamos tanto nas ideias e fugimos da realidade? O confronto com a realidade nem sempre tem que ver com uma caminhada para ir apanhar fruta, que me parece uma bela recompensa depois de um esforço. Muitas vezes esse confronto dá trabalho e dói. Não queremos ver o que precisa de ser transformado, decidido, mudado, e muitas vezes não queremos que Deus veja conosco. Além disso, tendemos a querer controlar a realidade e às vezes fazemos transplantes com elevados custos psicológicos e espirituais. Com o planeta digital que hoje também habitamos multiplicam-se as imagens e os estímulos que promovem projeções e comparações. Chegam-nos tantas narrativas de sucesso, de bem-estar, de autenticidade que muitas vezes somos incapazes de discernir a nossa voz no meio de tanto ruído. E é por isso que, volta e meia, bailamos com outras realidades e não com a nossa ou impingimos uns aos outros óptimas ideias irrealistas. Esta matéria parece-me tão essencial que, levada ao extremo, pode levar-nos a viver uma vida toda a partir de uma ideia de nós, do outro e de Deus, sem nos deixar experimentar realmente quem somos, conhecer os outros e ter uma relação com Deus. E podemos querer tanto controlar a vida, a realidade, que isso nos torna incapazes de ver os presentes diários que Deus nos dá e quer dar. É por isso que a falta de capacidade de partirmos da realidade pode adiar os nossos sonhos, ser desenraizadora e até destrutiva.
E o que é que esta história e este princípio têm a ver com o Advento? Os tempos litúrgicos são boas oportunidades para nos sentirmos, sentirmos a vida, sentirmos as relações, sentirmo-nos com e em Deus. E também são bons campos para as ideias: o Natal ideal, o presente ideal, a roupa ideal, o ambiente ideal, o coração ideal, a vida ideal. E de repente já dissemos tantas vezes “ideal” que nos cai tudo em cima. É por isso que às portas do Natal proponho que este princípio nos anime a uma espiritualidade da realidade e do recomeço. Por um momento, larguemos todas as ideias sobre nós, sobre os outros, sobretudo as que soam a exigência e as que nos fazem sofrer, e deixemo-nos ser e estar na realidade. Largar o peso e respirar fundo. Não porque desistimos ou nos resignámos, mas para podermos acolher o que Deus revela quando nós não nos agarramos às rédeas da nossa vida como se disso dependesse a nossa felicidade. E que é: que nos ama com toda a nossa história, toda a nossa realidade; que nos cuida e sustenta, em tantos gestos, sinais, e na Casa que nos oferece, e que vai conosco nos que caminham ao nosso lado.
Chegados ao presépio, que como sabemos fala mais de fragilidade do que de perfeição, de realidade do que ideia, entreguemos a Jesus o que em nós, nos outros e na realidade precisa de ser reconciliado, reparado, e até o que nos parece um mistério na nossa vida. Que este tempo de encarnação possa ajudar-nos a nascer de novo para a vida, a recomeçar a partir do lugar onde estamos, deixando que a luz que se acende no mundo a partir do nascimento deste bebé revele a beleza do que já somos e da vida que já é.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.