Palestina. Israel. Terra Santa. A terra de Jesus.
Desde há vários anos que resistia interiormente à possibilidade de viajar até aos sítios onde Jesus nasceu, viveu, pregou, morreu e ressuscitou. Se por um lado o apelo em conhecer os locais por onde Jesus passou era grande em mim, por outro, eram ainda maiores as minhas dúvidas, hesitações e resistências. Desde logo a questão do conflito Israelo-palestiniano. Este conflito sempre me chocou enquanto forma de opressão de um Estado sobre um povo, com sistemáticas violações de direitos humanos por parte do Estado de Israel, o recurso ao uso de violência por ambos os lados com tantas vítimas, consequência de uma complexa situação histórica, territorial e identitária. Ao longo da minha vida profissional, várias das organizações por onde passei, sempre apoiaram os construtores de paz de ambas as partes, assim como várias organizações que na Palestina trabalham em prol dos direitos humanos e pela defesa da dignidade e dos meios de vida do povo palestiniano. Assim, a ideia de visitar um território, onde permanece este conflito, apenas com a finalidade de conhecer colocava-me muitas e profundas reservas.
Mas também, no que diz respeito à dimensão da vivência da fé, tinha bastante receio que uma ida a locais fortemente visitados, com muitos turistas e onde o comércio religioso se impõe, pudesse ser um forte impeditivo para aquilo pelo qual ansiava profundamente: conhecer melhor Jesus e a sua vida. Pegando numa expressão com algum humor de uma amiga, tinha receio de encontrar nos locais a visitar um quase “Parque Temático Terra Santa” repleto de um certo tipo de “folclore religioso” que me gera bastante urticária e claramente me afasta de uma qualquer vivência espiritual. Por outro lado ainda, e como tantos de entre nós, desde a infância fui criando o meu próprio imaginário quanto às paisagens, ambientes, localidades e cidades onde Jesus viveu com base na leitura e escuta dos Evangelhos (certamente também marcado pela catequese, por séculos de arte sacra que cruzam o nosso quotidiano e património, assim como por vários filmes e series históricas). Ainda que limitada e pobre, estava confortável com a minha ( como refere Santo Inácio) composição do lugar e no fundo tinha receio que, confrontada com os lugares reais e atuais fosse obrigada a realizar profundas mudanças nessa composição ou mesmo não conseguisse “regressar” a esses espaços e lugares onde colocava a vida de Jesus. Em síntese tinha receio que uma ida à Terra Santa se transformasse numa irreparável desilusão.
Libertei-me destes e outros “a priori” e lancei-me assim numa experiência que se revelou ser um profundo mergulho, através da oração, em territórios fascinantes, novos, maravilhosos e por vezes desconcertantes (também!) de encontro com Jesus na sua terra.
Até que numa noite de insónia, durante o segundo confinamento, decidi que era tempo de deixar cair estas grandes resistências e partir. O apelo de uma oportunidade para poder aprofundar a minha fé e conhecer mais de perto Jesus, foram mais fortes e decidi que queria pisar, olhar, sentir, cheirar, tocar e rezar a terra de Jesus. Com a ajuda de amigos encontrei uma proposta adequada ao meu propósito – uma peregrinação (e não apenas uma viagem histórica ou umas férias) conduzida pelos lugares de Jesus, inspirada pela espiritualidade inaciana, e com propostas e tempos de oração. Libertei-me destes e outros “a priori” e lancei-me assim numa experiência que se revelou ser um profundo mergulho, através da oração, em territórios fascinantes, novos, maravilhosos e por vezes desconcertantes (também!) de encontro com Jesus na sua terra.
Regressei há algumas semanas mas estou ainda a aterrar interiormente e a agradecer por tanto bem recebido. Esta é uma viagem que vai saboreando no tempo, bem para além do tempo físico e do espaço concreto experienciado no local. Sinto que muito do que descobri, vi e senti está ainda à superfície, à flor da pele mas que, como um perfume, vai sendo pouco a pouco absorvido e tornando-se parte de mim. É-me difícil ainda (talvez seja demasiado cedo!) sistematizar ou partilhar aspetos mais relevantes deste percurso tão rico por terras de Jesus mas ainda assim, atrevo-me a partilhar duas vivências.
Aprendemos, e sobretudo acreditamos, num Jesus verdadeiramente Homem e verdadeiramente Deus. No entanto, apercebi-me como eu (nós?) tantas vezes nos refugiamos mais no Jesus divino. Como por vezes é difícil acreditar, aceitar, compreender, conhecer verdadeiramente este Jesus, homem do seu tempo e no seu tempo! No fundo, muitas vezes parece-nos que Jesus teria alguma vantagem, já sabia um pouco mais, e embora andasse cá na terra já estava mais perto do céu e por isso não era bem como nós. Mas os locais de Jesus revelam-nos de forma eloquente a sua humanidade. Estar em Nazaré é ser confrontado com uma cidade pobre, quase desconcertante, é “descer” da divindade ao pó das ruas e ser interpelado pela vida oculta de Jesus. Uma vida banal, comum, feita de trabalho, vivida no seio da família e amigos e como parte integrante de uma comunidade. Como nós. Fazer os trajetos é perceber como Jesus e os seus amigos se deslocavam, as longas distâncias que percorriam a pé. Sentir o calor extenuante e procurar as sombras e a frescura das grutas é compreender como Jesus sentia sede, fome e cansaço. Contemplar Jerusalém ao cair da noite desde o monte das oliveiras; visitar o possível local da casa de Caifás onde Pedro teria negado Jesus, percorrer as ruas de Jerusalém, rezando a via sacra por entre lojas, transeuntes, animais, lixo é chegar um pouco mais próximo da solidão, abandono e angústia vivida por Jesus na sua paixão. Como nos lembra o Papa Francisco “Jesus é um homem concreto, um homem que é Deus mas homem. Não é Deus disfarçado de homem. Não. Homem, Deus que se fez homem. A carne de Cristo” – 7 de janeiro 2019 Homilia na Casa Santa Marta.
Estar em Nazaré é ser confrontado com uma cidade pobre, quase desconcertante, é “descer” da divindade ao pó das ruas e ser interpelado pela vida oculta de Jesus.
Israel e a Palestina são locais onde se cruzam história(s) milenar(es) de povos, reinos, religiões, línguas e culturas, migrações, opressões e dominações, conflitos e guerras, bênçãos, esperança e sonhos de terra(s) prometida(s). Se esta realidade está presente em todos os territórios que visitámos nos passos de Jesus, Jerusalém é sem dúvida a manifestação mais exuberante dessa realidade vibrante, fascinante, contraditória e tensa. Uma metáfora passada e atual da história da humanidade. Quando por vezes sentimos a tentação de vivermos num local idílico, de nos fecharmos no nosso pequeno espaço seguro, de partilharmos os nossos dias apenas entre aqueles que nos são próximos ou partilham as mesmas convicções, Jesus e a sua terra chamam-nos a outro lugar. A viver, caminhar e amar aí mesmo onde há tensão e diversidade, onde há complexidade e incompreensão, onde há opressão mas também a possibilidade de libertação e paz. Compreender o contexto histórico, social e religioso em que Jesus viveu e pregou é compreender que Jesus não teve de todo uma vida serena, nem viveu num ambiente simples e fácil…Encontrar hoje em Belém o muro que separa esta localidade palestiniana de Jerusalém, e poder rezar junto à imagem de Maria aí presença pela queda de todos os muros que permanecem, é compreender melhor o desafio das Bem – Aventuranças.
Sim, a leitura e oração dos Evangelhos não voltaram a ser iguais desde que regressei. Encontram-se impregnados por tantos elementos sensoriais e espirituais de dão corpo, “espessura” e nova vida às descrições, frases e palavras de Jesus na Sagrada Escritura.
Palestina. Israel. Terra Santa. A terra de Jesus. A terra de todas e todos.
Nota final/Sugestão: Para quem tem ( e para quem não tem!) nos planos um visita às terras de Jesus deixo uma sugestão de leitura: “Jesus – Um encontro passo a passo” de James Martin, sj. Um livro que nos transporta no tempo, no espaço e na oração.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.