Podia ser o Nobel (ou para que servem os poetas)

Podia começar centenas de parágrafos com coisas preciosas que Chico Buarque nos deu, ao ritmo de mais do que uma por canção.

Era uma cassete branca com papel azul turquesa (haverá leitores que não se lembram do que é uma cassete mas, felizmente, há internet).

Ouvi tantas vezes a única música que ouvia da cassete (não me lembro, juro, quais eram as outras) que deixava o rewind correr o tempo certinho para voltar sistematicamente ao início da canção. Acabei por estragar a fita. Não sei se gostava mais da voz quente do senhor ou da voz doce da senhora. Era um dueto e só muitos anos mais tarde descobri que era uma música do Chico Buarque cantada por ele e pela Nara Leão. Só ainda mais anos mais tarde percebi que a letra não era só sobre dois meninos que brincavam ao faz-de-conta (suspeitava que talvez pudesse ser mais do que isso quando se dizia que “para além desse quintal era uma noite que não tem mais fim”; mas nessa altura, isso não exigiu de mim mais um do que uma suspeita).

Era uma caixa com cinco CD (CD talvez ainda alguns ainda não tenham esquecido o que é). Foi uma das três melhores prendas que recebi na minha vida. Deu-ma a minha mãe nos meus 18 anos. Descobri o Chico quase todo: o trovador, o cronista, o malandro, o cronista, o político. Tanto dentro daquela caixa comemorativa de 50 anos de carreira. Tanto. Tanto Mar. Tanto Amar. Descobri a minha música preferida de sempre.

Os poetas não têm de servir para nada. A humanidade também se define pela possibilidade de fazer coisas que não servem para nada.

O que nos leva ao parêntesis do título que, por sua vez, vem a propósito de uma pergunta que a minha filha mais nova me fez há uns dias. Do alto dos seus seis anos, perguntou-me quem era esse tal de Eugénio de Castro que dava nome à escola do irmão. Expliquei que era um poeta. Retorquiu “e que interesse é que isso tem para a escola ter esse nome?”. Comecei a argumentar com alguma ansiedade. Depois calei-me e fiquei dias a pensar nisso. A resposta chegou antes da atribuição do Prémio Camões a Chico Buarque e sem pensar especificamente nele. Os poetas não têm de servir para nada. A humanidade também se define pela possibilidade de fazer coisas que não servem para nada. Pelo menos aparentemente. Imagino que a poesia sirva aos poetas para conseguirem sobreviver. Aos leitores (que no caso da poesia são mais cúmplices do que outra coisa) serve para se reconciliarem. Consigo próprios, com o mundo. Ou para se reconciliarem com a inquietação percebendo que, como espalha a notícia outro poeta que também podia ser Prémio Camões, há coisas que “no fundo são iguais em todos nós”.

Podia começar centenas de parágrafos com coisas preciosas que Chico Buarque nos deu, ao ritmo de mais do que uma por canção: a genialidade da utilização das palavras, um mundo imenso de personagens, a cultura condensada, a multiplicidade de géneros, o arrojo dos arranjos, o tributo a outros grandes. Deixo só um parágrafo, ilustrativo das metáforas generosas que Chico nos oferece: “saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu”.

Chico Buarque de Hollanda podia ter ganho o Nobel da Literatura pela universalidade da sua obra. Ganhou o Prémio Camões. Temos a imensa sorte de partilhar a língua.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.