Pluralismo e participação política

A democracia é um acordo para... discordar, sem que isso leve quem fica vencido a recorrer à violência para fazer valer as suas opiniões. Mas não há Estados neutros.

Uma recente decisão do Tribunal Constitucional sobre a lei da eutanásia foi tomada por sete votos a favor e cinco contra. Foram conhecidas as justificações dos doze juízes, verificando-se apreciáveis divergências entre elas. O direito não é uma ciência exata como a matemática; admite várias interpretações. Aliás, é por isso que existem recursos para tribunais superiores, que frequentemente decidem de forma diferente da sentença obtida na primeira instância.

Estas divergências fazem confusão a pessoas pouco familiarizadas com a justiça. Mas o pluralismo de posições não se encontra apenas no plano judicial – é uma caraterística essencial dos regimes democráticos. No fundo, a democracia é um acordo para… discordar, sem que isso leve quem fica vencido a recorrer à violência para fazer valer as suas opiniões.

No passado, antes de existir democracia, as divergências “resolviam-se” pela violência e pela guerra. Hoje, nos regimes não democráticos, o poder político impõe as suas opções, que podem ser ou não (hipótese mais frequente) as opções da maioria do eleitorado que vive sob esses regimes.

Mas como garante a democracia a liberdade? A proposta do liberalismo individualista dá primazia à liberdade pessoal, uma área onde o poder político não deverá entrar. É uma visão fantasista e redutora, porque ignora a dimensão coletiva da pessoa. Os Estados têm mesmo que tomar medidas que são frequentemente contrárias aos valores pessoais de muita gente. A ideia de um consenso unânime é, na prática, irrealista.

Como conciliar, então, a liberdade pessoal com a necessidade de o poder político decidir numa sociedade pluralista, na qual se confrontam diferentes e às vezes até opostas visões daquilo que cada um entende ser o bem comum?

Como conciliar, então, a liberdade pessoal com a necessidade de o poder político decidir numa sociedade pluralista, na qual se confrontam diferentes e às vezes até opostas visões daquilo que cada um entende ser o bem comum?

A democracia procura responder a uma característica das sociedades modernas – o seu pluralismo. Ao contrário do que acontecia no passado, quando só casos excecionais iam contra a cultura dominante, na modernidade a maioria das pessoas tem valores e conceções do bem e do que é valioso muito diferentes. Como é possível que convivam pacificamente?

Historicamente foi importante o que se passou na América, ainda antes da independência. Muitos dos que emigravam da Europa para o território americano fugiam das sangrentas guerras religiosas europeias. Uma vez na América, houve um acordo tácito de não fazerem da religião um motivo de conflito. Para isso os poderes públicos teriam de ser neutros em matéria de religião, garantindo a cada pessoa a liberdade de seguir a religião que quiser ou não seguir alguma. A liberdade seria sobretudo negativa, no sentido de impedir interferências do poder político na esfera privada das pessoas.

A solução liberal tradicional parte de uma distinção entre fins e meios. Sobre os fins (os seja, os valores mais importantes, as conceções de vida, a moral, etc.) numa sociedade pluralista não pode haver consenso; mas pode e dever haver acordo sobre os meios para atingir os diferentes fins que existem nessa sociedade. No limite, nesta perspetiva o Estado teria de ser mínimo e sobretudo neutro, face à diversidade de conceções substantivas sobre o sentido, o valor e o fim da vida humana. O acordo quanto aos meios permitiria que cada um prosseguisse aquilo que é a sua visão pessoal do bem.

Só que um Estado neutro é uma ilusão liberal. Claro que a autonomia pessoal é um valor que deve ser preservado, limitando a intervenção estatal. Mas o Estado, qualquer Estado, tem forçosamente de tomar decisões substantivas e não pode limitar-se a regras instrumentais.

Claro que a autonomia pessoal é um valor que deve ser preservado, limitando a intervenção estatal. Mas o Estado, qualquer Estado, tem forçosamente de tomar decisões substantivas e não pode limitar-se a regras instrumentais.

Os governos todos os dias tomam decisões envolvendo valores que não são meramente instrumentais. Basta pensar no lançamento de impostos e na sua distribuição mais ou menos diversificada segundo as posses dos contribuintes. Ou no apoio público a determinadas obras de arte e não a outras. Ou na não criminalização dos homossexuais. Etc.

Por outro lado, se a democracia liberal implica tolerância perante opiniões, ideias e culturas de que discordamos, essa tolerância tem limites substantivos. Por exemplo, uma democracia não pode permitir costumes e regras que ofendam os direitos humanos. Na prática, o respeito pela cultura islâmica não pode ir ao ponto de permitir que as mulheres sejam maltratadas.

Em democracia, os governos atuam em função de consensos maioritários, não unânimes. Por isso a liberdade democrática não é meramente negativa – preservar espaços pessoais da intervenção do poder – mas é também uma liberdade positiva: o direito/dever de participar nos consensos que irão fundamentar medidas que todos terão de acatar, concordando ou não com elas.

A liberdade de participar no debate público não obriga as pessoas a envolverem-se na política. Mas implica que cada um não se alheie da “coisa pública”, como se nada tivesse a ver com isso. As pessoas têm opiniões, mais ou menos fundamentadas, e discutem informalmente essas opiniões com os amigos, a família, etc. A opinião pública dominante acaba por influenciar as decisões do poder político.

Nesse sentido, é importante que ninguém ignore a “res publica”. Atualmente, sente-se nas democracias um certo desencanto com os políticos. Mas esse é mais um motivo para que, em graus e posições diferentes naturalmente, as pessoas se interessem pela política. O mesmo é dizer, se interessem pelo bem comum.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.