Perdoar Saramago?

No centenário do nascimento de José Saramago (1922-2009), uma breve reflexão sobre a “resistência católica” ao Nobel da literatura português.

“Saramago? Estás a ler Saramago?” Esta, caro leitor, é uma pergunta mais frequente do que gostaria de admitir nos meios eclesiais e eclesiásticos em que me movo. O Nobel da literatura português é ainda uma espécie de pária do qual um “bom católico” se deve manter à distância sob pena de se deixar contaminar pela impura e imprópria língua e ideias. Talvez exagere um tudo nada, para fins de retórica, mas penso que ninguém negará que entre nós, católicos, há por Saramago mais rancor que amor, mais despeito que respeito.

No ano de 2022, celebrou-se o centenário do nascimento de José Saramago (16 de novembro de 1922 – 18 de junho de 2009). Creio que ao menos entre os frequentadores de livrarias tal efeméride não passou despercebida: as vistosas capas da reedição das obras saramaguianas eram presença assídua e conspícua nos escaparates reservados aos destaques. Pessoalmente, foi a ocasião para reler O clássico Memorial do Convento (leitura obrigatória ao tempo do meu secundário) e descobrir livros que até aqui não me tinham despertado interesse, como O Ano da Morte de Ricardo Reis (belíssimo!) ou As intermitências da Morte (genial!). Acabei por me dar conta que Saramago escreveu também algumas peças de teatro (A Noite, A segunda vida de Francisco de Assis, In Nomine Dei, etc.), que fiquei com curiosidade em ler. Foi igualmente neste contexto que escutei repetidas, em variegadas formulações, as perguntas-lamento com que iniciei o artigo e que me fazem agora refletir sobre o “Saramago católico”.

Saramago, para muitos católicos, é, antes de mais, o “perigoso comunista”. Nas redes sociais, em certos grupos ou páginas de inspiração cristã, é comum assistir-se a um interessantíssimo fenómeno sempre que o assunto toca direta ou indiretamente em instituições ou pessoas de próxima ou remota ligação a ideais marxistas: surge imediatamente um post com os link para os impiedosos pronunciamentos do Papa Pio IX contra o comunismo e o socialismo em todas as suas formas e expressões e para o decreto do Santo Ofício contra o comunismo, publicado em 1949. O pressuposto, claro está, é que a discussão termina ali. O “bom católico” evita tudo e todos os que possam ter que ver com a foice e o martelo. Estamos a discutir as personagens dum livro como O Memorial do Convento? Não interessa: ‘vá de retro, comunista!’ Estamos a apreciar a estética de um filme soviético? ‘Cuidado, não vendas a alma ao diabo!’

Mas, é necessário e justo despedir sumariamente tudo o que saia da pena ou da boca de um autor, artista ou, até me atrevo a sugerir, político comunista? Proscrever Saramago por comunista será “profético” ou simplesmente patético?

Evidentemente, ninguém nega a incompatibilidade entre ser católico e aderir a uma qualquer ideologia de evidente pendor totalitário, seja de esquerda ou de direita. Nem é honesto negar os males e as vítimas dos regimes comunistas, do passado e do presente. Mas, é necessário e justo despedir sumariamente tudo o que saia da pena ou da boca de um autor, artista ou, até me atrevo a sugerir, político comunista? Proscrever Saramago por comunista será “profético” ou simplesmente patético?

É verdade que, no caso de Portugal e dos católicos portugueses, se junta à equação a questão do anticlericalismo ou, melhor dito, antieclesialismo de José Saramago. O evangelho segundo Jesus Cristo (1991) e o último dos seus romances publicado em vida, Caim (2009), foram lidos como o culminar literário de uma obsessão por achincalhar a fé e os crentes cristãos, que, no limite, atravessa toda a obra e todas as intervenções públicas de Saramago. Há, seguramente, motivos para pensar que José Saramago não nutria grande amor pela instituição eclesial como tal e, em não raras ocasiões, deu asas a um certo azedume. A mim, pessoalmente, inspira-me mais pena que ofensa que tenha dito frases como “A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana” ou que, nalguns romances, se deixe levar por certos estereótipos anticlericais. Mas, nada disto me impediu, nem penso que deva impedir um crente, de apreciar até as mais blasfemas das obras saramaguianas. O evangelho segundo Jesus Cristo e Caim merecem ser lidos como um exercício literário de desconstrução do legado de interpretação judaico-cristão e não como o equivalente literário a lançar pedras às janelas da igreja. A dissidência saramaguiana que transforma Jesus e Caim em uma espécie de sindicalistas da causa humana e coloca em interdito a imagem divina só é possível porque os textos sagrados abrem espaço à leitura e releitura, convocando crentes e não-crentes. Há, por isso, no desafio que estes e outros livros colocam ao monopólio de sentido que insistimos em impor sobre as Escrituras qualquer coisa de saudável e, porventura, de necessário. A ironia com que Saramago esventra algumas passagens bíblicas talvez me choque e nos choque, mas é ainda um convite a revisitar aqueles textos, a eventualmente modificar as nossas perguntas, a apreciar a fibra desta obra divino-humana que continua a inspirar tudo menos indiferença.

Comunista e anticlerical, Saramago é ainda mau escritor. O estilo saramaguiano, diz-se ainda, é simplesmente mau português. Poucos parágrafos, pouca ou nenhuma pontuação, um texto impenetrável. Este lamento é, muitas vezes, o “último baluarte”. Se as “questões de princípio” não se mostram suficientes, recorre-se agora ao desgosto estético de circunstancial professor de língua portuguesa da primária. É evidente que cada um tem o direito a apreciar mais ou menos um determinado estilo literário. Parece-me mais arriscado, em todo o caso, condenar um Nobel da literatura como analfabeto. Mas, e isto é o lado tão cómico como incriminatório do assunto, Saramago parece concentrar sobre si uma fúria escolástica à qual escritores como António Lobo Antunes ou Valter Hugo Mãe escapam sem maiores méritos. A este observador dá a impressão que há aqui mais fumo que fogo, isto é, mais moral que estética ou ortografia.

Saramago não é ou não foi um santo. Nem, evidentemente, o único génio literário português. Nem pretendo que a nós, católicos, só nos resta “bater com a mão no peito” e pedir desculpa. Mas, pergunto-me se não terá chegado o tempo de tratar a obra de Saramago sem ansiedade de tipo moral ou religioso e sem excecionalismos de indignação. No fundo, perdoar Saramago, perdoando-nos a nós mesmos pela forma pouco hábil de zelo filisteu, porque, finalmente, o pai de Blimunda e do humaníssimo cão das lágrimas não merece tanto… nem tão pouco.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.