Paz?! Que Paz?

O cristianismo, argumenta Mounier, é realista. Aceita a inevitabilidade da força-bruta do mundo natural e procura transformá-la em força-virtude pela inserção progressiva da justiça e da superabundância da caridade.

A paz cristã não é sinónimo de tranquilidade nem de ausência de guerra armada. Ela não é uma ordem exterior alheia à vida pessoal de cada um. A paz é Caridade, é benevolência inquieta

 

Quando olhamos para o mundo verificamos que o número de conflitos tem vindo a aumentar (e.g., guerras entre estados, guerras civis, insurgências terroristas, guerras ao narcotráfico, conflitos de fronteira, etc. – cf. – Countries Currently at War / Countries at War 2024 ). Inevitavelmente a constatação deste facto é acompanhada pelos clamores e apelos à paz mundial, expressos quer por cidadãos anónimos, quer por muitos dos intervenientes e promotores dos conflitos. Porém, quando se pede a paz, de que paz se está a falar?

O conceito paz, similarmente a outros (e.g. justiça, liberdade, igualdade, etc.), é extraordinariamente amplo e sem um conteúdo natural, necessitando de ser preenchido e de receber uma direção específica. Nesse sentido, qualquer reivindicação de paz está historicamente enraizada e adquire distintas nuances consoante a cultura e a época que a define (e.g., para Platão a guerra e a paz são muito diferentes consoante o conflito é entre gregos ou entre gregos e bárbaros. Cf República 470a-d). Por isso, o primeiro ponto a ter em conta é o de que as definições abstracionistas tendem a não fazer jus ao conceito nem a permitir uma compreensão e aplicação prática do mesmo.

Pense-se que o modo mais fácil e abstrato de definir paz é fazê-lo negativamente: a paz é a ausência de guerra. Este sentido negativo, embora constitua um ponto de partida fundamental para a construção da paz, é manifestamente insuficiente. A ausência da guerra armada poderá não passar de uma paz podre alimentada por ódios, mentiras e egoísmo ou ter-se transformado em outros modos de guerra – económica, social, ideológica, etc. – ou, ainda, pelo triunfo, domínio e opressão de um dos lados. Na melhor das hipóteses este sentido não passa de uma paz exterior e superficial, um protocolo de cortesia que regula a relação entre seres humanos.

Carece-se de um sentido positivo para a paz. Múltiplas sugestões podem ser feitas a este propósito. Seguirei, neste texto, as três possibilidades identificadas por Emmanuel Mounier em “Le Chrétiens Devant le Problème de la Paix” (1939): paz armada, pacifismo idealista e paz cristã.

A noção de paz armada ou belicismo parte de uma ideia concreta. A história revela a presença da força-bruta na natureza e nas relações humanas e, por isso, ela pode ser vista como o percurso dos sistemas de forças que se empurram. A paz é uma força que se impõe. Vejam-se historicamente as realizações da pax romana, da pax germânica ou, mais recentemente, da pax americana. Esta é, porém, uma paz de permanente sobressalto e medo, vivendo-se continuamente em pé de guerra e esgotando os recursos públicos em armamentos. Os problemas e paradoxos do belicismo foram magistralmente denunciados por Stanley Kubrik na comédia Dr Estranho Amor (1964) e por Bertrand Russell em “Methods of Settling Disputes in the Nuclear Age” (1959).

O pacifismo idealista traduz o que Mounier chama de ‘sensibilidade comum ocidental’. Uma sensibilidade que detesta a brutalidade e pretende construir o ser humano e as sociedades sem a força-bruta do mundo. Fá-lo focando-se na metafísica, moral e técnica da tranquilidade, isto é, na procura da ‘felicidade’ individual. Neste caso, a felicidade está desligada dos outros e aspira à doçura do viver, isto é, à abundância e ao conforto. Aqui, o mundo moral já não é proposto como empreendimento e procura coletiva de uma medida comum entre os seres humanos, sendo antes composta por uma profusão de pequenas felicidades avarentas. A paz torna-se sinónimo de ‘vive e deixa viver’, de deixar e ser deixado em ‘paz’. O problema é o indiferentismo resultante, cheio de protestos e indignações que ocultam a insensibilidade crónica ao outro, à mentira e à cobardia. Aspira-se a uma proteção contra a guerra similar à que no dia-a-dia se usa contra a miséria do próximo. O importante é salvaguardar o conforto (compras e comida ao domicílio, música e cinema online, aumento de férias, etc.).

Esta é uma perspetiva frouxa. Mounier recorda que “a paz não é um estado débil, é um estado forte que requer de nós o máximo de desprendimento, de esforço e de risco para manter nela o heroísmo da nossa vocação cristã” (“Le Chrétiens Devant le Problème de la Paix”, 801). A paz cristã não é sinónimo de tranquilidade nem de ausência de guerra armada. Ela não é uma ordem exterior alheia à vida pessoal de cada um. A paz é Caridade, é benevolência inquieta.

O ponto de partida é idêntico ao do belicismo: o ser humano é biológico e social, pelo que não é possível compreendê-lo à margem do seu corpo e da sua pertença à sociedade. A força-bruta é uma realidade inerente à natureza e à condição humana. Ora, se o belicista tem razão neste ponto, daí não decorre a sua conclusão de que a guerra é uma fatalidade da natureza. De igual modo, o pacifismo idealista acerta ao pretender conduzir o ser humano à generosidade e bondade, mas falha por assumir uma visão seráfica do mundo e do humano. O cristianismo, argumenta Mounier, é realista. Aceita a inevitabilidade da força-bruta do mundo natural e procura transformá-la em força-virtude pela inserção progressiva da justiça e da superabundância da caridade. O processo é lento e os retrocessos são sempre possíveis, visto o ódio e a violência estarem continuamente a reaparecer nos corações de cada geração.

Nesse sentido, a construção da paz começa no interior de cada um, enquanto resposta ao chamamento para realizar heroicamente o humano novo, aquele que vivifica desde o interior a única paz duradoura. Aquela em que não faz discriminação de pessoas, segundo a máxima de Paulo: “não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl, 3,28).

Nesse sentido, a construção da paz começa no interior de cada um, enquanto resposta ao chamamento para realizar heroicamente o humano novo, aquele que vivifica desde o interior a única paz duradoura.

O mandamento do amor é absoluto, impondo-se não como uma abstração inumana e descarnada, mas como luz e telos último do drama histórico humano. Neste, cada movimento é proposto para a nossa decisão, desafiando-nos a ver no outro o nosso irmão, alguém que tem de ser amado (mesmo se não se gosta dele).

O desafio para os cristãos, bem como para a generalidade dos seres humanos, é o de se tornarem agentes construtores da paz a todos os níveis – desde os seus conflitos interiores pessoais até às problemáticas mundiais. De encontrarem caminhos e meios de introduzir a Caridade na natureza e na sociedade, compreendendo que a paz não é um estado ou um estatuto automático derivado da ciência ou do direito, mas um processo construído por atos de amor pessoais, a partir do Amor superabundante. Para além disso, a paz não é exclusivamente uma disposição individual, mas uma realidade comunitária.

Em suma, que cada um de nós olhe para si, para as pequenas comunidades a que pertence (familiar, laboral, religiosa, etc.) e para o seu país, procurando criar na história meios de resistência à força-bruta do ódio, da mentira e da chantagem. A paz mundial deve merecer toda a nossa atenção e cuidado, contudo não deve ser descurada a noção de que a paz começa em casa, no nosso interior e nas nossas comunidades. Possa cada um de nós ser aí um agente de paz e amor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.