Este ano, por força das circunstâncias que se vivem em Portugal, mas também em tantos outros países da Europa e do resto mundo, a Páscoa vai ser diferente. A quinta-feira será sem Missa crismal, nem a celebração da Ceia do Senhor, em que tradicionalmente se procede ao lava-pés. Na sexta-feira santa não haverá a celebração litúrgica comunitária da paixão e morte do Senhor, nem as tradicionais procissões com os passos do Senhor Jesus crucificado e de Nossa Senhora das Dores. No sábado santo, não haverá Vigília Pascal. Depois de uma Semana santa vivida de forma quase clandestina, a Páscoa será também sem celebrações multitudinárias. Porventura, a bênção urbi et orbi nos será dada, de novo, numa praça de São Pedro deserta. Contudo, os fiéis, unidos a Pedro, festejarão, no recato das suas casas, agora, mais do que nunca convertidas em autênticas igreja domésticas, o triunfo da vida sobre a morte, da graça sobre o pecado e, também, da saúde sobre a doença e, portanto, da esperança. Aleluia!
Esta Páscoa escondida que se avizinha e que, por ser atípica, nos parece tão estranha, talvez seja um chamamento a uma celebração não mais intimista – a fé, sendo pessoal, só pode ser vivida em comunidade, ou seja, em Igreja – mas mais verdadeira, mais centrada no que é essencial, porque despida do que, sendo bom e piedoso, nos distrai da realidade deste mistério e presença. O silêncio das nossas igrejas e as nossas ruas desertas grita-nos a realidade da existência do Deus absconditus, de que falavam os antigos, e que se tornou realidade na Eucaristia. São Francisco Marto, o mais místico dos videntes de Fátima, gostava de procurar Jesus no silêncio do tabernáculo e era na sua doce companhia que passava horas de oração, que eram também de adoração e de expiação.
Porque privado da sagrada Comunhão, por força das actuais circunstâncias, o povo de Deus padece uma imensa fome eucarística que, enquanto não for possível retomar as celebrações comunitárias, só pode ser compensada pela adoração do Senhor sacramentado, onde seja possível.
Talvez não seja descabido afirmar que a Eucaristia é, por excelência, um mistério pascal, não apenas pela presença real, verdadeira e substancial de Jesus Cristo, com o seu Corpo glorioso, Alma e Divindade, mas também pelo carácter sacrificial da própria celebração eucarística, que não se resume a uma mera representação, ou memorial, da paixão e morte do Senhor, mas verdadeiramente renova e realiza o sacrifício redentor. O carácter sacrificial da Missa é um princípio irrenunciável da doutrina católica porque, de outra forma, perder-se-ia a substância da própria celebração enquanto renovação, incruenta, do sacrifício de Cristo na Cruz. Ora, quando Jesus Cristo, na última Ceia, instituiu o sacramento do seu Corpo e Sangue, fê-lo na perspetiva de um Corpo dado e de um Sangue derramado, ou seja, antecipou a oblação que faria de Si mesmo no altar da Cruz.
À luz desta interpretação eucarística da Páscoa, muitos dos relatos evangélicos ganham um novo sentido. Ou seja, a Eucaristia não é apenas um fruto, ou efeito sacramental da entrega de Jesus Cristo na Cruz, é também, por assim dizer, a expressão histórica e metahistórica, sacramental, desta realidade.
Com efeito, a Eucaristia, embora renovação do sacrifício de Cristo na Cruz, que renova e actualiza, não se repete ao modo desse sacrifício, mas da ceia que o antecipou. Por isso, a Eucaristia é celebrada à mesa, convertida em altar, em jeito de refeição, tal como o Senhor fez na última Ceia. Mais ainda, como o Mestre dissera no seu longo discurso proferido na sinagoga de Cafarnaum, Ele é verdadeira comida e verdadeira bebida, que os seus discípulos são chamados a comer e beber (Jo 6, 52-58).
Ou seja, a Eucaristia não é apenas um fruto, ou efeito sacramental da entrega de Jesus Cristo na Cruz, é também, por assim dizer, a expressão histórica e metahistórica, sacramental, desta realidade.
É também significativo que até a traição de Judas seja descrita, por João, em clave eucarística. É este evangelista que pede ao Mestre, discretamente, que lhe revele a identidade do traidor. “Jesus respondeu: ‘É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado’. E molhando o bocado de pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes. E, logo após o bocado, entrou nele Satanás” (Jo 13, 26-27). É esclarecedora a relação estabelecida entre o alimento e a traição: não só Jesus se serve do bocado de pão que lhe oferece para o denunciar, como o próprio evangelista regista uma relação, senão de causalidade pelo menos de continuidade, entre o alimento consumido e a possessão diabólica.
Esta relação entre a traição de Judas e o bocado de pão por ele ingerido – o facto de ser um “pão ensopado” sugere que é o seu Corpo e Sangue, verdadeira comida e bebida – será depois desenvolvida pela moral sacramental. Com efeito, na Eucaristia, Jesus Cristo, através do sacerdote ou do ministro extraordinário da Comunhão, se nos dá presente em “um bocado de pão”. E, porque esse pão já o não é, mas o seu Corpo, Sangue, Alma e divindade, real, verdadeira e substancialmente presente, São Paulo, na sua primeira carta aos cristãos de Corinto, diz que “todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e sangue do Senhor. Portanto, examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba deste vinho; pois aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação” (1Cor 11, 27-29).
A Eucaristia realiza o mistério da presença real de Jesus, para além do espaço e do tempo. De facto, antes da sua ressurreição gloriosa, Cristo estava sob o domínio do espaço e do tempo: enquanto homem, só estava no lugar ocupado pelo seu Corpo, unido à sua Alma e divindade, mas agora pode estar em qualquer lugar e sempre, não por virtude da multiplicação da sua existência, que continua a ser única, mas da sua presença eucarística.
Não é esta, afinal, a lição dada aos discípulos de Emaús? Estes dois desanimados crentes deixam Jerusalém, persuadidos de que a morte de Cristo na Cruz pôs termo a todas as suas expectativas. Também supunham que, as notícias dadas sobre a eventual aparição do crucificado, mais não eram do que falsos rumores, ou, como modernamente se diria, fake news. No seu regresso a Emaús, encontram-se com Jesus, com Ele caminham e conversam animadamente, até dele próprio e da sua paixão, mas não são capazes de O identificar. Significativamente, a revelação só acontece “quando [Jesus] se pôs à mesa, tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, entregou-lho. Então os seus olhos abriram-se e reconheceram-no; mas Ele desapareceu da sua presença” (Lc 24, 30-31).
De novo se insinua a presença eucarística do Senhor Jesus, porque, é ao partir do pão, que os discípulos se dão conta da Sua presença, que não foram capazes de advertir durante todo o tempo em que Ele, “começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito” (Lc 24, 27). Mas, paradoxalmente, quando O reconhecem, desaparece da sua presença ou, melhor seria dizer, da sua visão, porque, pela fé, já O sabem sempre presente na Eucaristia, embora sem O verem.
Uma Santa Páscoa escondida, mas fervorosa no amor a Jesus na Eucaristia!
Fotografia Laura Allen – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.