Há quatro anos atrás, após a estratégia política usada por António Costa para formar Governo, Portugal acordou para uma realidade da qual, nos seus então 41 anos de democracia, parecia nunca se ter apercebido: nas eleições legislativas não votamos para o Primeiro-Ministro, nem para o Governo, mas elegemos os deputados à Assembleia da República (AR).
As campanhas eleitorais, que deveriam servir para a elucidação dos cidadãos, têm antes contribuído para a deseducação dos eleitores. Com efeito, pelo país fora começaram por estes dias a aparecer cartazes e outdoors dos partidos políticos, sempre com a figura do seu Presidente, Secretário-Geral ou Coordenador nacional em destaque. No entanto, poucos de nós somos conscientes de que, nas eleições legislativas, somos chamados a eleger os deputados do nosso círculo eleitoral.
A título de exemplo, o voto no Bloco de Esquerda de uma pessoa recenseada em Alfândega da Fé (distrito de Bragança) não contribui em nada para a eleição da Doutora Catarina Martins (que é candidata pelo distrito do Porto), mas sim para a eleição do Doutor Pedro Oliveira (e dos candidatos que se lhe seguem, na lista do respetivo distrito). Neste sentido, faz muito pouco ou nenhum sentido colocar a imagem do dirigente de um determinado partido num distrito onde ele não está na lista de candidatos a deputado. Fazendo uma rápida pesquisa nas páginas web dos diversos partidos com assento parlamentar, até 2 de setembro apenas a CDU e o BE disponibilizavam, com fácil acesso, as listas dos candidatos a deputado por distrito, sendo que o PSD, o CDS e o PAN se limitavam a apresentar os respetivos cabeças de lista. Na página web do PS o acesso a essa informação, a existir, não era de todo evidente.
Esta falta de informação e de consciência por parte dos eleitores de que estamos a votar nos representantes que nos são (ou deveriam ser) mais próximos, impede os cidadãos de se aperceberem da grande injustiça que o atual modelo de distribuição dos deputados encerra, e que contribui para acentuar ainda mais as desigualdades existentes no país e promover elitismos e as regiões já de si mais favorecidas.
A situação agrava-se ainda mais quando os partidos colocam as senhoras e senhores “das suas obrigações” como cabeças de lista por distritos onde, quando muito, possuem lá uma quinta onde vão passar uns dias no verão.
De acordo com a Lei Eleitoral para a AR, os 230 deputados são distribuídos pelos diversos círculos eleitorais do território nacional, proporcionalmente ao número de eleitores de cada círculo, segundo o método de Hondt. A distribuição dos deputados dos círculos “Europa” e “Fora da Europa” segue outra regra. A aplicação deste método tem como consequência o facto de o distrito de Portalegre eleger apenas dois representantes na AR, enquanto que Lisboa e Porto juntos são representados por 88 deputados (38% do total dos deputados). Só o distrito do Porto (40 mandatos) elege mais deputados do que os restantes distritos da Região Norte (Braga, Bragança, Viana do Castelo e Vila Real) que, juntos, elegem 33 mandatos. Além do mais, os círculos eleitorais mais periféricos – Açores, Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Madeira e Portalegre – que correspondem a metade da área do território nacional, com cerca de 1.300.000 eleitores, elegem, no seu conjunto, apenas 13% dos deputados do Parlamento.
A distribuição de deputados proporcionalmente ao número de eleitores, segundo o método de Hondt, segue certamente um padrão de justiça formal. Todavia, esta mostra-se insuficiente, por não permitir olhar ao que se passa no terreno. Num país que vive concentrado no litoral, onde as oportunidades de realização profissional, de acesso a bens e serviços são muito maiores para quem vive nas grandes cidades de Lisboa e Porto, do que para quem vive no resto do país; num país que votou ao completo esquecimento o seu interior e as populações que lá habitam, de quem apenas nos lembramos quando alguma tragédia por lá passa; num país onde o poder político, económico e social parece continuar concentrado num determinado número de famílias que vivem numa circunscrita zona do país, parece-me que a distribuição dos deputados à AR segundo este método constitui uma grande injustiça. Porque os que estão perto dos centros de poder e decisão, os que pertencem às cúpulas das máquinas partidárias, às grandes empresas, aos grandes escritórios, esses têm uma vasta lista de lugares para preencher na AR. Ao passo que Bragança se faz representar por apenas três deputados, e o mesmo acontece em Beja, Évora e Guarda.
A situação agrava-se ainda mais quando os partidos colocam as senhoras e senhores “das suas obrigações” como cabeças de lista por distritos onde, quando muito, possuem lá uma quinta onde vão passar uns dias no verão. Felizmente, esta situação – que ainda se verifica nalguns partidos – tem vindo a diminuir, e nestas eleições grande parte dos candidatos a deputados (e os respetivos cabeças de lista) são residentes ou possuem fortes ligações aos distritos que representam.
Afirma o princípio da igualdade que se deve tratar de forma igual aquilo que é igual, e desigualmente aquilo que é desigual, na medida da sua desigualdade. Ora, a distribuição dos deputados à AR segundo um critério estrito de proporcionalidade perpetua injustiça, precisamente por não respeitar este princípio. Como já referi, o lugar onde se nasce e onde se vive continua – após 45 anos de democracia – a ser motivo de desigualdade no nosso país, e a situação parece que não tem vindo a melhorar nos últimos tempos. As vidas de quem vive no interior não são visíveis para o nosso Parlamento (excetuando-se claro os dias de campanha que se aproximam). E, portanto, há que tomar medidas para contrariar este fatalismo.
A reforma do critério de distribuição dos deputados à AR poderia ser um importante passo nesse sentido. Uma solução possível poderia passar por garantir um número mínimo de deputados para cada círculo eleitoral (independentemente do número de eleitores), e os restantes mandatos serem distribuídos segundo um critério de proporcionalidade. Mas uma reforma deste género teria igualmente que garantir que esses mandatos fossem atribuídos a pessoas que efetivamente vivem ou mantêm estritas ligações às populações que iriam representar. A Lei da Paridade, promulgada em março deste ano, e que obriga as listas para as eleições a conterem uma representação mínima de 40% de cada sexo, já mudou critérios, obrigando muita gente a ceder os seus lugares, para incluir muitas mais mulheres em lugares elegíveis, o que certamente tornará a nossa AR mais diversa. Por que será que ninguém está interessado em tomar medidas deste género para favorecer as populações das zonas periféricas do país?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.