Recentemente o jornal New York Times fez notícia de um evento realizado num bar em Brooklyn, com o tema Reading Rhythms, explicando tratar-se de uma Reading Party, ou seja, uma festa na qual os participantes eram convidados a aparecer com um livro e a sentarem-se a ler, durante uma hora, na companhia de outros, após o que se quebraria o silêncio para uma conversa sobre os livros em mãos. A ideia pareceu-me genial e as fotografias tiradas nessa noite mostram um ambiente extraordinário de gente com os narizes enfiados em livros em vez de écrans de telemóveis. O sucesso da primeira edição foi tal, que para as seguintes já há lista de espera. O artigo dizia que, lá porque uma cidade nunca dorme, não quer dizer que não haja quem deseje estar na companhia de outros a virar as páginas de um bom livro.
Tendemos a encarar a leitura como um ato solitário, porém, não tem de ser assim.
Recordo-me de um final de dia na praia, em que dei por mim a observar duas mulheres (que percebi serem mãe e filha), a passear de braço dado à beira-mar, com um livro aberto entre ambas. Uma lia em voz alta, enquanto a outra, calmamente, sorria e molhava os pés com as calças arregaçadas. A imagem ficou-me na retina pela intimidade da leitura partilhada em movimento.
Há qualquer coisa de irmandade que surge quando nos reunimos à volta de um livro, uma afinidade que aproxima, uma afeição que se constrói, por isso, quando há uns bons anos uma amiga me ligou a perguntar se eu estaria interessada em fazer parte de um Book Club, a minha resposta foi: – “Não sei o que isso seja, mas book e club na mesma frase parece-me bem, conta comigo!”
De início, reuníamo-nos sentadas em cadeirões e almofadas pelo chão, à frente de uma lareira com uns aperitivos à mistura, mas rapidamente passámos para a versão jantar que, não só nos dá mais tempo, como traz aquela descontração própria de quem se encontra em redor de uma mesa que se enche de livros, comida e garrafas de vinho.
Podemos ler todas o mesmo livro ou eleger um tema ou um autor e cada qual escolhe o seu livro a partir daí.
Com o tempo, fomos aprendendo a desafiar-nos, a sair do aconchego das nossas leituras de conforto, a ler aqueles livros que, de outro modo, não agarraríamos. Assim, já lemos sobre guerra, amizade, racismo, famílias, escrever, alegria, música, ilhas ou perdão. Já lemos os clássicos e os contemporâneos, os portugueses, os espanhóis, os russos, os brasileiros, os franceses, os árabes, os indianos, os japoneses e os proibidos em qualquer língua. Já lemos romance, policial, ensaio, biografia, poesia, memória, novela gráfica, distopia e livros sobre livros e ainda há tanto por onde escolher.
A cada leitura crescemos e aprendemos um pouco mais, questionamos muita coisa sobre nós e sobre o mundo e descobrimos a experiência extraordinária da leitura coletiva, porque o olhar de uma é sempre diferente do da outra, tal como o são o sentir, a atenção, a sensibilidade, o gosto, o sublinhado, a anotação na página ou no caderno de leituras.
As discussões são tão acesas quanto a disparidade das nossas personalidades e se há livros que reúnem consenso mais ou menos generalizado, também os há de amor-ódio, a agitar páginas no ar, com afeição ou indignação e dedos apontados ao alto, acusatórios ou afirmativos e ternuras partilhadas e fúrias nada contidas.
As discussões são tão acesas quanto a disparidade das nossas personalidades e se há livros que reúnem consenso mais ou menos generalizado, também os há de amor-ódio, a agitar páginas no ar, com afeição ou indignação e dedos apontados ao alto, acusatórios ou afirmativos e ternuras partilhadas e fúrias nada contidas.
Depois, vamos mais longe, queremos saber da credibilidade das personagens, da beleza de um parágrafo, da originalidade da estrutura, da geografia (já houve mapas e cartas topográficas a passarem por cima da mesa), da sociedade e da política que permeia o livro e procuramos também o que está para lá do texto, queremos saber dos autores, da sua época, da sua história, do seu engenho e até já ousámos convidá-los para jantar e, pasme-se, eles vieram!
Os livros são o contexto que trazemos para a mesa, mas com eles (e através deles), são também as nossas vidas, as nossas histórias, as nossas experiências, os nossos desafios, as alegrias e as tristezas que vêm à baila, porque um bom livro também entra por nós adentro, mexe com os cordelinhos, faz acordar aquela fibra incómoda em que não queremos mexer, puxa o fio da memória, dá-nos a imagem do espelho ou o consolo de sabermos que já houve alguém que viveu aquele pedaço de emoção.
Ao lermos juntas, há uma teia que se tece e que nos aproxima. O livro é a agulha que passa pela trama, a linha com que nos cosemos em diferentes texturas e tons.
Uma das histórias relatadas por Afonso Cruz em O vício dos livros, tem por título: “Os livros que nos casam” e relata o encontro do autor com um jornalista colombiano que lhe pede um autógrafo num livro que havia recomendado a uma mulher da qual havia, entretanto, ficado noivo e lho queria oferecer como presente de aniversário. No final desse texto lê-se: “Não sei se chegaram a casar ou sequer se continuam juntos. Porém, se este texto parecer, de algum modo, um elogio à possibilidade de os livros e a leitura nos juntarem, e quem sabe até nos casarem, há que ter em consideração que pode também ser tomado como aviso”.
Eu cá, acredito na possibilidade de os livros nos amigarem.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.