Os heróis quotidianos da liberdade: Samuel Paty

Quando nos lembrarmos de 2020 não podemos esquecer o seu nome: Samuel Paty. O obituário apelidou-o de «Soldado de Infantaria da Liberdade». Na mouche.

«É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história (…)» Papa Francisco, Benção Urbi et Orbi, 27 de Março de 2020

O fim do ano é geralmente um momento de reflexão. Mesmo 2020 não escapa a esta tradição. Estive a rever os textos publicados ao longo deste ano aqui no nosso Ponto SJ e o percurso é um bom indicador de como vivemos tempos excepcionais. Comecei com a democracia liberal taiwanesa, não fui capaz de esquecer aquela fotografia do Papa Francisco na Praça de São Pedro, passei pela certezas e dúvidas sobre a pandemia a nível internacional e o último texto foi sobre a diplomacia chinesa no Twitter, ou melhor, a sua tragédia. De todas as reflexões e palavras que ouvi e li ao longo deste ano foram as do Papa Francisco na Benção Urbi et Orbi no final de Março, que mais me marcaram.

Começo este meu último texto do ano com as palavras do Papa Francisco sobre aqueles trabalhadores invisíveis que «estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história.» A pandemia mostrou como são cruciais para que a nossa vida em sociedade se mantenha a funcionar desde os enfermeiros aos trabalhadores dos supermercados. O Papa falou-nos tendo em conta o contexto excepcional da pandemia, mas não só. Há tantas profissões que são sempre fundamentais para a nossa sociedade, seja em que contexto for.

Nós não ensinamos «apenas» matérias, mas também tentamos dar aos nossos alunos ferramentas para que possam desenvolver um pensamento crítico bem fundamentado.

A Pandemia nas suas dimensões tão diversas e, por vezes, surpreendentes é o «acontecimento» deste ano e parece que tudo gira à sua volta. O seu impacto a nível doméstico é inegável e o mesmo pode ser dito a nível internacional. No entanto, e não querendo de todo menorizar a «protagonista» de 2020 gostava de vos falar de Samuel Paty, um professor que foi assassinado em França.

Ter bons professores é fundamental para a coesão e para o avanço de uma sociedade. Nós não ensinamos «apenas» matérias, mas também tentamos dar aos nossos alunos ferramentas para que possam desenvolver um pensamento crítico bem fundamentado. No fundo, o nosso objectivo pedagógico é o de ensinar a reflectir e não o de formatar. Pelo que soubemos do professor Samuel Paty percebemos o quanto gostava de ensinar e de como tentava encontrar formas originais de fazer os seus alunos «entrarem» na História e na Educação Cívica.

O obituário da revista The Economist sobre Samuel Paty é muito revelador. Percebemos que era um professor popular e «apaixonado, especialmente quando ensinava a democracia ateniense e a revolução francesa». Como ensinar essência e a importância da liberdade de Expressão? Segundo o mesmo obituário, «usando como exemplo as caricaturas sobre Maomé feitas pelo Charlie Hebdo.» Mas, apesar de todas as precauções incluindo a de «explicar que quem se pudesse sentir ofendido poderia optar por não olhar», desta vez o que se seguiu à aula foi uma «tempestade furiosa» que começou com alguns pais. Foi acusado de ser «islamofóbico» e a situação foi escalando via redes sociais contra o professor francês, que «se sentiu ameaçado, pois o nível de ódio dos ataques era algo de novo».

Samuel Paty foi degolado aos 47 anos porque não deixou de cumprir com brio a sua tarefa de ensinar e de acreditar na sua missão pedagógica. É um herói dos tais cujo quotidiano não está no centro dos holofotes mediáticos. Quando nos lembrarmos de 2020 não podemos esquecer o seu nome: Samuel Paty. O obituário apelidou-o de «Soldado de Infantaria da Liberdade». Na mouche.

Fotografia de Oussama Zaidi – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.