Os Gato Fedorento, a mensagem do Papa e a política

A liberdade não se impõe, cresce com outros, e ninguém é livre sem que os outros sejam também livres. Recordemos que ser verdadeiramente livre é assumir responsabilidade pelo cuidado da casa comum.

Há mais de uma década, uns desconhecidos Gato Fedorento revelavam, no seu blog, uma troca secreta de manuais que ocorria sempre que a cor política do Governo mudava: o poder a ser instaurado entregava o manual da oposição; os destituídos confiavam a novas mãos o manual da governação. Este ficcional «Auto de São Bento» descreve na perfeição o atual panorama político, em que em lugar de troca de ideias assistimos a tristes espetáculos de fraco pugilismo, em que os boxeurs estão pendentes do seu guião, buscando o maior número de seguidores possível nas redes com a grande aspiração de tornar-se “viral”.

O Papa Francisco, na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2019, apela a que sejamos “artesãos da paz” e a comprometer-nos com a política. Mas construir a paz, numa realidade entrincheirada, não se faz com palavras suaves; exige-nos uma denúncia profética. Desvalorizar o sentimento reinante de desconfiança em relação à nossa classe política – das inumeráveis suspeitas de corrupção a uma Assembleia da República rica em fantasmas e pobre de presenças – é ignorar o elefante na sala.

Há que abandonar a cumplicidade com esta conjuntura em que a opinião é independente da realidade e vive refém de interesses; urge deitar fora o conformismo que faz de cada um de nós escravo das escolhas dos outros, bem como a postura de não-envolvimento, que resultará, mais cedo que tarde, na implosão do tecido social. Adotemos uma atitude fundada na liberdade individual que ousa colocar-se ao serviço do bem comum, na construção de uma comunidade de maturação humana. Apostemos na solidariedade entre todos, e não contra alguns, aquela que derrubou o muro de Berlim e que alimentou o movimento dos direitos civis nos EUA.

Há que abandonar a cumplicidade com esta conjuntura em que a opinião é independente da realidade e vive refém de interesses; urge deitar fora o conformismo que faz de cada um de nós escravo das escolhas dos outros.

A liberdade não se impõe, cresce com outros, e ninguém é livre sem que os outros sejam também livres. Recordemos que ser verdadeiramente livre é assumir responsabilidade pelo cuidado da casa comum. Neste ano de decisões eleitorais, arrisquemos novamente a política, pois esta, ainda que manchada pela corrupção e pelas más práticas, é o instrumento idóneo para alcançar a verdade, o bem e a justiça. Estas não podem ser possuídas plenamente por uma parte, mas deixam-se ver quando nos entregamos à sua busca.

Sozinhos, ou entrincheirados em coletivos identitários, nunca alcançaremos uma sociedade solidária e sustentável; para sermos “artesão da paz”, temos que arriscar entrar em campo sem juízos acabados, nem medos infundados; temos que arriscar acreditar na discussão política. Quem busca a verdade não tem nada a temer. Arrisquemos ser «artesãos da paz» sem recear encontros incómodos, nem com medo a articular aquilo em que acreditamos; não deixemos a oportunidade que 2019 nos reserva passar incólume, seja através do envolvimento partidário, seja através do singelo ato de votar. Caso contrário, resta-nos o triste «Auto de São Bento», forte em engenho, e fraca consolação.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.