Segundo certa forma tradicional teísta de conceber Deus, que se costuma denominar teísmo e que conheceu um forte desenvolvimento filosófico, espiritual e sobretudo popular, pensamo-Lo habitualmente como um ser (um ente) entre os outros, embora com um estatuto especial: é o primeiro ser (ente), sendo por isso origem de tudo o resto (numa versão um pouco simplista da causa primeira); ou então é um sujeito, com o qual nos relacionamos, como nos relacionamos com os outros humanos ou com o resto do mundo. Mas essa tradição corresponde a uma noção muito problemática de Deus, que não corresponde completamente ao modo como a Escritura o concebe, nem sequer ao modo como certa tradição filosófica e espiritual o concebeu. Hoje fala-se numa conceção “pós-teísta” de Deus, para exprimir a busca de uma forma de o pensar e experimentar que evite esse modo que poderíamos denominar, embora de forma algo simplista, “substancialista” e que acaba por o invocar, ou de forma mágica, ou como mais um ente deste mundo.
Da minha parte, proponho que pensar e experimentar Deus em contexto pós-teísta implique recuperar o paradigma da mediação, que não é novo e que, em rigor, atravessa todos os textos escriturísticos. Segundo esse paradigma, Deus não pode ser pensado e experimentado diretamente, nem como um ente nem como um sujeito, mas sempre e só no processo em que se pensam e experimentam realidades do mundo que são consideradas Sua mediação. Nesse sentido, as mediações humanas/mundanas de Deus são o único modo de O experimentarmos; elas constituem, por isso, real presença Sua no contexto de uma realidade que podemos experimentar; mas essa presença real acontece sempre numa diferença insuperável entre Deus e a Sua mediação. Ainda que seja realmente Sua, não deixa de ser mundo, e por isso insuperavelmente diferente de Deus.
Na variedade de perspetivas e textos do Primeiro Testamento, há dois elementos que podemos considerar permanentes: por um lado, a diferença entre Deus e o mundo, que exige reconhecer que nada do mundo – nem os humanos – é divino. Ao mesmo tempo, assume-se que não acedemos diretamente a um âmbito que pudéssemos denominar divino, sagrado, como um mundo em si mesmo, em que Deus se encontraria, ou que seria o próprio Deus. Deus, não sendo mundo, só se pode experimentar enquanto mundo: o amor a Deus, no amor ao próximo; a lei de Deus, numa lei humana; a palavra de Deus, na palavra dos humanos (sobretudo dos profetas); a sabedoria de Deus, na sabedoria dos humanos; as promessas de Deus, nas promessas dos humanos. Tudo isso são mediações humanas/mundanas de Deus, as únicas nas quais podemos invocá-Lo.
Nesse sentido, as mediações humanas/mundanas de Deus são o único modo de O experimentarmos; elas constituem, por isso, real presença Sua no contexto de uma realidade que podemos experimentar; mas essa presença real acontece sempre numa diferença insuperável entre Deus e a Sua mediação.
O Segundo Testamento ou a Escritura cristã – enquanto leitura específica do Primeiro Testamento – concentra a mediação de Deus na mediação humana de Jesus de Nazaré. Em tudo igual a nós, enquanto humano, é assim que ele é real acontecimento mundano de Deus. Segundo a tradicional formulação de Calcedónia, na sua pessoa, humanidade e divindade não podem separar-se, mesmo que se distingam. Ou seja, mantendo a relatividade do humano, Jesus constitui a realização máxima da mediação de Deus no mundo. Realização enquanto completa humanidade, com todas as características que nos constituem, exceto o pecado, que é perversão do humano (não me refiro a certas fragilidades que são constitutivas do humanas, que essas também foram partilhadas pelo Homem-Deus).
Num dos seus sentidos mais fundamentais, a Ressurreição do Senhor (ou, do ponto de vista teológico e simbólico, a sua Ascensão) implica a transfiguração de um modo de mediação – a do corpo carnal e histórico de Jesus como corpo de Deus – noutros modos de mediação, animados pelo Espírito de Deus (Espírito carnal, e não simplesmente espiritual!). Assim sendo, a ausência do humano Jesus transforma-se em condição de possibilidade que inaugura outras mediações, precisamente aquelas em que agora participamos.
A essas mediações podemos chamar “corpos” de Deus, na medida em que constituem manifestações mundanas – sempre também materiais e corpóreas – da presença real e ativa de Deus no mundo, único modo de realização da sua ação salvífica. Participando todas elas da mediação do corpo histórico de Jesus – e tornadas possíveis, pela sua presença enquanto um de nós, mas permitidas pela sua ausência inaugurada na morte e ressurreição – podem compreender-se segundo as seguintes dimensões, articuladas umas com as outras. Proponho como guia para esse percurso o caminho de Emaús, episódio sumamente elucidativo, devido ao conjunto de metáforas que origina, e que aqui só tomo de modo genérico, sem pormenores, recorrendo ao que cada leitor pode recordar livremente.
Antes de tudo, podemos considerar o corpo próprio de cada sujeito – crente ou não – como mediação da presença e ação de Deus.
Antes de tudo, podemos considerar o corpo próprio de cada sujeito – crente ou não – como mediação da presença e ação de Deus. Aquilo que cada um “sentia” na conversa do caminho permite suspeitar uma forma de presença no corpo de cada um, que se torna umas das mais básicas mediações da presença de Deus. Essa presença na carne é mesmo anterior a qualquer elaboração reflexiva sobre o seu significado e a sua validade. Sente-se, simplesmente.
Mas é preciso cuidado com a fixação no corpo próprio. A perceção corpórea de nós mesmos, precisamente através daquilo que sentimos, é impossível sem a relação ao corpo do outro – antes de tudo, o humano, mas não só. Assim sendo, o corpo de Deus que se faz nosso corpo não pode separar-se do corpo do outro que, no nosso corpo, introduz uma interpelação do exterior, transcendente. O outro é a primeira mediação da transcendência, em relação a nós mesmos. E é-o, antes de tudo, na sua presença corporal perante nós, na nudez do seu rosto. Os discípulos, no caminho de Emaús, não só eram mais que um (dois, que é o mínimo exigido para constituir o humano), como foram confrontados com um corpo estranho, interpretado como estrangeiro (pois não sabia o que se tinha passado). O corpo do outro, sobretudo quando está fora dos horizontes de compreensão que nos são familiares, por ser marginal e estrangeiro, é a fundamental mediação de Deus, é o principal corpo de Deus – como foi o caso de Jesus.
O reconhecimento – no sentido de conhecer, compreender, mas também de aceitar, acolher – do Ressuscitado, dá-se na fração do Pão, momento em que, sintomaticamente, os discípulos deixam de O ver, ou seja, em que o seu modo de presença se altera. A fração do pão evoca essencialmente dois modos de mediação, dois corpos que irão ser fundamentais para a experiência cristã: o corpo eclesial, como comunidade de corpos humanos individuais que interagem; e o corpo eucarístico, como pão cuja matéria se dá a tomar, a comer, com um especial sentido.
A primeira dimensão está especialmente evocada pelo ato de partir. Na presença de um corpo apenas, de um indivíduo, não seria necessário partir. Parte-se o pão para repartir, e isso acontece porque se instaura uma dinâmica comunitária em que cada corpo é o que é porque está exposto ao corpo dos outros, à necessidade de outros, num dinamismo que, entre eles, instaura o “em comum” de uma comunidade. Partir(-se) para (se) dar, na exposição ao outro, é o núcleo da constituição do corpo comunitário, neste caso como corpo eclesial, o que permite falar da Igreja (concreta e local) como corpo de Cristo ou corpo de Deus.
Mas aquilo que se parte e reparte não são simplesmente ideias, projetos, crenças: reparte-se o pão, enquanto objeto deste mundo que, sendo fruto do trabalho dos humanos (agri-cultura), não é menos fruto da terra (natureza). O pão recolhe em si a conjugação da natureza e da cultura, dos objetos e dos sujeitos, sem que possam separar-se e abstrair-se da sua mútua relação, numa rede de interações infinda. Assim sendo, também os corpos do mundo, mesmo os corpos dos objetos “inanimados” estão incluídos no corpo de Deus, que na sua tarefa de mediação acolhe tudo aquilo que o mundo pode dar – exceto a sua perversão enquanto pecado, que por sinal só é introduzido pelos humanos, não pelos objetos (nem pelos animais).
Mas, se retomarmos todo o trajeto de Emaús como introdução e realização da Eucaristia, poderemos dizer que, na sua celebração, enquanto realização histórica do corpo de Deus, se articulam todas as dimensões da corporeidade humana e divina, sem separações: o corpo próprio como constituinte do eu; o corpo do outro como caminho incontornável dessa constituição; o corpo comunitário como articulação da exposição dos humanos ao diferente de si; o corpo da terra, enquanto matéria que constitui os objetos e constitui todos os outros níveis da corporeidade. É aí – e não noutro lugar ou noutro tempo, noutro mundo – que o Corpo de Deus se dá nos corpos deste mundo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.