Os cansados da guerra

Porque lutam os ucranianos, e porque recusam render-se? Por aquilo que o Ocidente democrático, liberal e capitalista se define: pela liberdade e pela soberania.

A guerra permite o regresso do grande consenso entre democratas e liberais de esquerda e direita sobre os valores fundamentais da sociedade onde acordamos viver, com liberdade e regras para discordar e competir. E para a direita clássica verificar a óbvia fronteira que tem com a direita que não é ocidentalista.

 

A rapariga tem um casaco claro, calças azuis, cabelo louro e um microfone na mão. Pelas siglas não sei de onde é, mas como vem com um operador de câmara, percebo que é para uma televisão. Mas de onde? No passeio da principal praça do bairro europeu em Bruxelas, a Rotunda de Schuman, aproxima-se, com o microfone preparado, e pergunta: “acha que os europeus estão cansados da guerra (na Ucrânia)?”. Na voz há evidente custo em fazer a pergunta. Há a tristeza de quem preferia não ter esta dúvida. É ucraniana.

Cansados? Como cansados? Os ucranianos estão cheios de coragem, de força, de determinação, no meio de morte, destruição, violência, tortura, raptos, violações. Os ucranianos foram atacados, defendem-se. Como é que os europeus, pelo menos os que têm valores, poderiam estar cansados? Pagamos um preço por essa guerra, sim. Mas cansados? Como se a guerra fosse uma maçada, uma arrelia que se devia evitar? Não, não há cansaço. Mas há egoísmos. E uma cegueira ideológica muito contemporânea.

O efeito prático da polarização dos últimos anos está à vista nas dúvidas e hesitações entre alguma direita no apoio à Ucrânia e na compreensão do que está em causa. (À esquerda também, mas a conversa é outra e já lá vamos). De tanto se alimentar do ódio ao outro lado (exatamente como acontece com os seus inimigos), alguma direita não consegue suportar a ideia de concordar com quem normalmente discorda. E em vez de pensar sobre o absurdo que é não perceber o que está em causa e preferir recusar os princípios básicos do Ocidente, que é suposto defender, pensa que tem de pensar o oposto do que os seus inimigos políticos pensam. Seja lá o que for.

De tanto se alimentar do ódio ao outro lado (exatamente como acontece com os seus inimigos), alguma direita não consegue suportar a ideia de concordar com quem normalmente discorda. E em vez de pensar sobre o absurdo que é não perceber o que está em causa e preferir recusar os princípios básicos do Ocidente, que é suposto defender, pensa que tem de pensar o oposto do que os seus inimigos políticos pensam. Seja lá o que for.

Que à (extrema) esquerda (radical) haja quem queira que a guerra acabe rapidamente, não por amor sincero à paz, mas para evitar o que possa aparecer como uma vitória do Ocidente liberal, democrático e capitalista, é compreensível. Mas esse sentimento à direita, sobretudo de quem se diz herdeiro da direita clássica, conservadora, é obsceno.

Os cansados da guerra não estão fartos de morrer, nem de se ferir, ou sequer de passar fome ou pagar bens fundamentais a preços caros. Estão, genericamente, fartos de que se fale de um tema em que há muito acordo, quase unanimidade, e falta confronto com os inimigos do costume. Como não gostam de Biden, não podem apoiar os americanos. Como não gostam da Europa da União Europeia, porque é internacionalista e globalista, não podem concordar com Von der Leyen. Como acham que há muita gente de quem geralmente discordam, não toleram esta unanimidade ao centro. Vivem da convicção de que do lado de lá têm de estar monstros. E o lado de lá, para esta gente, é onde os adversários políticos estiverem. Seja lá onde isso for. E, desta vez, em muitos casos é ao lado da Ucrânia. E da Europa, dos Estados Unidos de Biden e da NATO.

É dessa leitura do mundo que se alimentam Trumps, Salvinis, Órbans, Venturas. O Ódio está-lhes no sangue do projecto político.

Esta gente não faz ideia – ou faz, mas não lhes interessa – do que é o Ocidente. Estão sempre disponíveis a fazer uma guerra de sofá, no Facebook, no Instagram, no Twitter, ou no Telegram, sobre as propostas dos adversários políticos. A linguagem supostamente neutra (matéria facilmente risível) deixa-os capazes de fazer manifestações…. Uma casa de banho unissexo encontra-os à beira da apoplexia. Deitar abaixo estátuas e proibir livros (dois absurdos contemporâneos que resultam, precisamente, do tribalismo) fá-los crer que o mundo acabou. Mas uma guerra provocada por um regime autoritário contra a liberdade, a soberania de um Estado e a sua escolha pelo Ocidente, a Europa e a NATO, entedia-os, aborrece-os, deixa-os fartos. Irritados por partilharem posições com o (os moderados do) lado de lá. Esta gente não é de direita, não é ocidentalista, não é atlantista. É apenas tribal.

Mas uma guerra provocada por um regime autoritário contra a liberdade, a soberania de um Estado e a sua escolha pelo Ocidente, a Europa e a NATO, entedia-os, aborrece-os, deixa-os fartos. Irritados por partilharem posições com o (os moderados do) lado de lá. Esta gente não é de direita, não é ocidentalista, não é atlantista. É apenas tribal.

A guerra da Ucrânia era, além de tudo o mais, uma oportunidade para duas coisas: o regresso do grande consenso, entre democratas e liberais de esquerda e direita, sobre os valores fundamentais da sociedade que defendemos. E onde acordamos viver, com liberdade e regras para discordar e competir. E para a direita clássica verificar a óbvia fronteira que tem com a direita que não é ocidentalista. E, de facto, essa fronteira vai se estabelecendo. Com algumas surpresas ocasionais, mas na maior parte dos casos, com as expectáveis confirmações.

Mais de um ano depois, justifica-se voltar ao começo da guerra. Porque lutam os ucranianos, e porque recusam render-se? Por aquilo que o Ocidente democrático, liberal e capitalista se define: pela liberdade e pela soberania.

Nenhum conflito no mundo é a preto e branco. Os campos de batalha estão obviamente cobertos das infâmias de que todos são capazes, incluindo os justos. E este Ocidente está cheio de falhas. Mas tem a única virtude que os outros regimes não têm nem nunca terão: pode ser corrigido por nós. Podemo-nos manifestar. Nos opor. E isso só faz sentido se compreendermos que é normal partilhar este espaço com quem discordamos. E nisso teremos de estar de acordo. E, não, não estaremos cansados da guerra enquanto os ucranianos estiverem dispostos a lutar.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.