São dezasseis as órbitas que uma estação espacial faz ao redor da terra no espaço de vinte e quatro horas. Isto significa que, enquanto nós, em qualquer ponto do planeta, orientamos a nossa existência quotidiana pelo espaço de um dia, um astronauta conta dezasseis órbitas ao nosso redor. É assim, “o espaço desfaz o tempo em bocadinhos”, mas um astronauta tem de usar relógio para comunicar com a terra-mãe, ancorar aí a sua mente e deve repetir para si mesmo: “esta é a manhã de um novo dia” para que a manhã não irrompa, “incisiva, a cada noventa minutos.”
São seis as pessoas deste livro, duas mulheres e quatro homens. Têm família e amigos, tiveram uma infância, perderam alguém, casaram-se, tiveram filhos, sonhos, desilusões, conquistas. Uns creem em Deus, outros não, quase todos sentem a solidão da distância e procuram uma ligação aos seus nas pequenas recordações que levaram para o espaço. Têm rotinas, obrigações a cumprir, razões para celebrar e temores para gerir. São “Seis num enorme H de metal” a pender “no fabuloso e improvável quintal da terra”.
Isto é um cenário de hoje, afinal, o homem já pousou o pé na lua, já temos imagens de Marte e do astro rei em constante erupção, até já se inauguraram viagens turísticas propulsionadas aos céus para quem quiser um lugar de primeira classe à paisagem que se avista “lá em cima, onde há planetas sem fim” (e aqui fica saudosa e geracional homenagem à série “Era uma vez o homem”).
Importa, pois, dizer que este não é um livro de ficção científica, é apenas ficção no sentido em que se trata de uma história que é fruto da imaginação, mas que nada tem de improvável, pois nela não se inventam futuros possíveis, nem se fala de estranhas criaturas nunca vistas. Este é um pequeno (mas grande) livro bem assente na nossa realidade, na nossa humanidade, no nosso tempo, no nosso alcance.
Ouvi numa entrevista que, em miúda, a autora, Samantha Harvey, colecionava citações de astronautas e que, para escrever este “Orbital”, visionou centenas de horas de vídeos da estação espacial internacional que é o habitat destas páginas, a partir do qual olhamos esta casa comum que é o planeta Terra, “ora uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços”, assim nos lembra o Papa Francisco no início da Carta Encíclica Laudato Si.
Estes astronautas que há meses vivem no espaço, movem-se como se nadassem no ar e contemplam a terra através de uma escotilha; veem os continentes, a imensidão dos mares, descobrem os países cujas fronteiras não se distinguem, os grandes rios que se desenham como um reptil ondulante e, nas dezasseis órbitas do livro (uma para cada capítulo), observam um grande tufão e pensam naqueles que o enfrentam, receiam pelas suas vidas, desejam que procurem refúgio.
Estes astronautas que há meses vivem no espaço, movem-se como se nadassem no ar e contemplam a terra através de uma escotilha; veem os continentes, a imensidão dos mares, descobrem os países cujas fronteiras não se distinguem, os grandes rios que se desenham como um reptil ondulante
Conhecemo-los pelo nome e deles vamos sabendo também a história, através da memória que cada um faz da própria vida, das angústias que têm, dos desejos que acalentam, dos sonhos que sonharam. São gente como nós, só que no espaço.
Às vezes, saem da “lata” de metal que os abriga e ficam a flutuar num espaço imenso, com o coração pequeno a latejar no peito, a controlarem o impulso inevitável do medo quando apenas um cabo os impede de se perderem num tempo sem fim, num espaço que não acaba, numa “sopa radioactiva” provocada pelo sol que ruge a uma centena e meia de milhões de quilómetros da terra.
Pensam que talvez a estação espacial pudesse ser operada por robots capazes de prever todas as surpresas e anomalias, reparar todas as avarias, calcular todas as rotas e aproximações, a oscilação dos ventos e as durações possíveis dos fenómenos climatéricos que assolam a terra, “mas o que seria enviar para o espaço criações que não têm olhos para o ver nem coração para o temer ou exultar por estar no seu seio?”
Os astronautas contemplam o planeta e comovem-se, desejam-no como o voltar a casa, querem protegê-lo “contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou” (Laudato Si), olham a Terra e percebem que tudo é fruto de um tempo inimaginável de criação e destruição cíclicas.
“No calendário cósmico do Universo”, tendo o Big Bang acontecido “há quase catorze milhões de anos”, nós surgimos só há bocadinho e, no entanto, já fizemos tanto. O nosso “planeta é formado pela força absolutamente extraordinária da avidez humana” que mudou tudo o que nele existe e, como se isso não bastasse, fomos também espalhando milhares de detritos que hoje orbitam a terra e que são restos de satélites, de naves, da presença humana que reivindica também o espaço, “o único lugar intocado que temos”.
Olhamos para cima e sonhamos que talvez, depois de já nada restar de habitável nesta casa que nos foi dada, depois de se esgotar o último grão de misericórdia, de paz, de justiça e de amor, depois de percebermos a inutilidade de todas as fonteiras e de todas as guerras, talvez haja ainda um lugar, lá fora, na escuridão onde consigamos recomeçar.
Orbital é uma profunda meditação sobre o milagre do planeta terra e sobre a nossa humanidade, é um livro imersivo, no qual a autora brinca com a linguagem, sempre refinada e intensamente visual; nele somos questionados sobre Deus, sobre solidão, sobre esperança, sobre morte, sobre os laços que nos unem, sobre o sentido da nossa vida e o que fazemos com ela, sobre o nosso futuro enquanto espécie e a maravilha única do nosso planeta, deixando-nos ainda um aviso à navegação: “talvez sejamos os novos dinossauros e tenhamos de ter cuidado”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.