Quando um computador pode realizar, em brevíssimos segundos, o que nós, humanos, levamos horas, ou talvez dias, a fazer, põe-se a questão de saber se viremos, no futuro, a ser substituídos por máquinas. Mas, para responder, convém perceber o que somos, afinal, nós, seres humanos?
É aqui que o Papa Leão XIV nos ajuda, ao promover uma espiritualidade católica que nos humaniza nestes tempos que correm. Se Leão XIII, ao enfrentar os desafios da Revolução Industrial, procurou defender a dignidade dos operários contra o desenvolvimento desumano do mundo fabril, Leão XIV depara-se hoje com o mundo invisível dos dados, dos sistemas inteligentes, da hiperconexão digital. É neste contexto que o Papa sublinha o essencial: não os cabos ou circuitos, nem a força racional da lógica, mas o coração – e aqui em continuidade explícita com a Encíclica Dilexit nos de Francisco. De facto, é no coração que reside a resposta à questão de saber o que somos nós, humanos.
É por isso que, num recente discurso aos seminaristas, Leão XIV apelou para que voltassem ao “coração”. Regressar ao coração num contexto que nos mantém “hiperconectados” digitalmente passa, evidentemente, pela oração: uma prática aparentemente simples, mas radicalmente subversiva num tempo em que somos bombardeados pelo constante ruído das notificações.
Este apelo do Papa, para cuidarmos da interioridade dos nossos corações, nunca foi tão urgente e atual. Apesar de todo o bem obtido graças aos avanços tecnológicos da era digital, também enfrentamos hoje o risco de nos perdermos numa existência desconetada do nosso próprio interior. É fácil esquecer, hoje, o coração que nos torna humanos, tão humanos. Num tempo marcado pela aceleração constante da informação, é comum deixarmo-nos arrastar por um turbilhão de estímulos numa ansiedade que nunca nos pacifica. Distraídos e divididos pelas notificações que não param, facilmente nos afastamos de nós mesmos. E, assim, podemos acabar por esquecer de cuidar do nosso coração. É por isso que rezar é, hoje, resistir à tentação de habitar apenas mundos virtuais.
Regressar ao coração num contexto que nos mantém “hiperconectados” digitalmente passa, evidentemente, pela oração: uma prática aparentemente simples, mas radicalmente subversiva num tempo em que somos bombardeados pelo constante ruído das notificações.
Era Kierkegaard quem dizia não ser preciso viver no mesmo tempo histórico de Jesus para ser seu “contemporâneo”. Ao discípulo, basta entrar numa comunhão de corações com o seu Mestre, onde ambos nutrem e experimentam os mesmos sentimentos. E é justamente isso que Leão XIV nos convida a fazer: tornar-nos contemporâneos de Cristo pelo modo como rezamos e nos relacionamos com os outros. Mas o Papa vai ainda mais longe. Não se trata apenas de uma espiritualidade interior e silenciosa: trata-se, antes, de cuidar das relações que tecemos a partir do corpo que somos. E é neste aspeto que as suas homilias e os seus discursos me têm confirmado na minha fé católica; uma fé que deve ser concreta; que se faz de presença corpórea. Pois o cristianismo não se reduz a doutrinas ou emoções interiores, já que anuncia um Deus feito carne – e pão. É por isso que na fé católica não basta ver ou ouvir: é preciso tocar e comer o corpo de Deus.
Foi isto que o Papa me levou a pensar na homilia que proferiu na solenidade do Corpus Domini, recordando o que Lucas relata no seu Evangelho: “as multidões ficavam horas e horas com Ele, que falava do Reino de Deus e curava os doentes” (cf. Lc 9,11). E foi na presença dessas pessoas famintas que Jesus “levan[tou] os olhos, pronunc[iou] a bênção, part[iu] o pão e d[eu] de comer a todos” (cf. v. 16). A fé católica não se alimenta de símbolos nem de metáforas. É corpo concreto. É alimento vivo. É resposta existencial ao mandato de Cristo: “Tomai todos e comei!”
Mais que nunca, a Eucaristia é hoje, nesta era do digital, um lugar onde podemos continuar a ser humanos. Com todas as vantagens que a Inteligência Artificial e a robótica nos oferecem, haverá sempre o mandato de Cristo que se recusa a ser virtualizado. Participar na Santa Missa exige fazer-se presente, na proximidade do corpo e na concretização dos gestos. Quem santifica o Domingo, vai a uma Igreja, reza diante de um altar, onde oferece pão e vinho, como frutos da terra e do trabalho das mãos humanas, para depois os receber como um alimento que veio do Céu. O corpo que se ajoelha e que se ergue de mãos estendidas reza com todos os seus sentidos. Escuta a Palavra proclamada. Respira o cheiro do incenso que se eleva aos céus. Olha para o padre, vendo os seus gestos e as cores litúrgicas no altar de Jesus. Toca as outras pessoas com um estender da mão, um abraço ou um beijo, fazendo a experiência da paz de Cristo. E, por fim, saboreia o pão consagrado. No sentido mais literal que lhe possamos dar, o Corpo de Deus é comido, mastigado. E, na homilia proferida na Missa onde se celebra a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, Leão XIV apelou à “unidade do corpo de Cristo” que é a Igreja: os futuros padres, quais pastores, são chamados a aproximarem-se das pessoas concretas que compõem as comunidades cristãs deste tempo. E aproximar-se significa fazer-se corporalmente presente, como o pastor que ganha o cheiro das ovelhas.
Na era da nuvem e do algoritmo, a Eucaristia parece ser o único lugar onde o divino desce à terra, pedindo para lhe tocarmos com as nossas mãos humanas, tão humanas. Obrigado, Leão XIV, por confirmares a minha fé católica. Ao escutar os teus discursos, ganho uma maior devoção pela Santa Missa e pelo Deus encarnado que se faz pequeno e concreto no pão. Obrigado por me convidares a regressar, no meio da revolução digital, não ao passado, mas ao presente do meu coração. É aí onde, talvez, poderei um dia amar como Jesus, cuidando daquilo que nenhuma máquina poderá gerar: a verdadeira humanidade que se faz de corpo e afeto.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.