O Verbo faz-se carne

O mistério da Encarnação implica-nos, pois, na atenção e na salvaguarda da força espiritual das nossas formas corporais e existenciais, linguísticas e culturais, lugares que são da presença do Verbo.

Orientamo-nos, de novo, para o Natal. Com ele, os cristãos fazem memória e renovam a sua exposição ao mistério da encarnação do Verbo – o Verbo faz-se carne que nós podemos ouvir, ver e tocar e, n’Ele, ter a vida (cf. Jo 1, 14 e 1 Jo 1, 1-2) – e à estrutura sacramental da vida cristã – não se dá presença de Deus sem corpo, sem palavras, sem formas culturais, mas, também, sem que qualquer lugar da realidade, matéria, palavra ou forma possa pretender esgotar a totalidade do Espírito.

O Natal começa por nos pôr em contacto com o que nos é mais elementar. Somos corpo real, lugar delimitado e tangível que habita um tempo, que ocupa um espaço, que tem a sua linguagem, que é interface de múltiplas relações. Pelo corpo, somos possibilidade e limite. Por ele, somos parentes da criação: alimentamo-nos, protegemo-nos, reproduzimo-nos. Sendo seres vivos como uma árvore ou um animal, somos, porém, bastante mais. A comida é bem mais do que alimento que sacia a fome, como a roupa é bem mais do que agasalho ou o sexo bem mais do que instrumento de reprodução. Elevamo-nos do chão como seres afetivos, simbólicos, espirituais. Somos ambas as coisas, ainda que em tensão nem sempre fácil de manter: somos “húmus” e somos “sopro”, argila beijada por Deus, segundo a imagem do livro do Génesis. Pelo contacto corpóreo com o mundo e com os outros, contacto que é tátil e acústico, visual, olfativo e gustativo, tomamos consciência de nós próprios como relação e abertura. O nosso-ser-corpo é pele, superfície de contacto, necessidade de proteção, estratégia de reprodução; o nosso-ser-corpo-espiritual é caixa-de-ressonância, exercício de apreço e de discernimento do sentido que faz vibrar a alma, que ilumina a inteligência, que põe em movimento a vontade. Por isso, para nós, humanos, tocar é também ser tocado, ouvir é pressentir, ver é ser visto e ser interpelado, cheirar e gostar é apreciar. A realidade não é só coisa a usar e a consumir; é lugar simbólico, caixa de ressonância de sentido, abertura espiritual à transcendência. Vale para a comida, para o sexo, para a natureza e para tantos outros lugares humanos, que são capazes tanto da maior elevação como da maior degradação. Quando o corpo e o espírito se ignoram e se separam, excluindo-se mutuamente, é um e é o outro que se corrompem.

Pelo contacto corpóreo com o mundo e com os outros, contacto que é tátil e acústico, visual, olfativo e gustativo, tomamos consciência de nós próprios como relação e abertura.

O mistério da encarnação do Verbo assume e eleva este húmus humano, impedindo de justificar espiritualmente a negação ou a evasão do corpo e da história. Sim, o mundo, com as suas coisas, pode ser ilusão, corrupção e degradação. Mas seríamos injustos e não colheríamos a sua verdade se o reduzíssemos ao avesso dessa desordem. O corpo e os sentidos, a pele e o que é ordinário, o particular e o parcial, o periférico e o marginal são capazes de fazer ecoar o Espírito. A revelação cristã coloca Deus à altura do corpo e da história, das linguagens e das culturas, com as suas aberturas e possibilidades e com as suas ambivalências, ambiguidades e corrupções. Contra uma gnose espiritualizante, sentimental ou etérea, a encarnação vincula a fé cristã à salvaguarda da forma corpórea do divino e à força espiritual do corpo e das suas linguagens – desde o início do cristianismo, o gnosticismo é a grande contestação da encarnação, com a força enganadora de parecer mais espiritual: com as suas muitas variações históricas, orienta o conhecimento de Deus para fora do corpo e da história e conduz a elevação do espírito humano pelo caminho da rejeição do mundo e das vicissitudes da história como se fossem coisa más, onde Deus não poderia ser reconhecido e correspondido. Mas a ortodoxia cristã resiste a esse canto sedutor do espírito sem corpo, da verdade do divino sem a radicalidade da encarnação, quando se alicerça sobre o reconhecimento de Jesus Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Verdadeiro homem, porque o Logos faz-se carne na história de vida de Jesus de Nazaré, que vemos e ouvimos, tocamos e apreciamos: se não assumisse tudo o que é humano não salvaria tudo o que é humano; verdadeiro Deus porque a história de Jesus de Nazaré, filho de Maria, com toda a sua vida, as suas palavras, os seus encontros, os seus atos, as suas parábolas, é a presença real entre nós do Filho gerado pelo Pai deste toda a eternidade. O seu nascimento, a vida pública, a cruz, a morte, a ressurreição, a ascensão, que podemos identificar como expressões do corpo de Jesus, são fenómenos da qualidade de Deus. Sabemos quem é Deus nesses lugares existenciais da vida de Jesus de Nazaré, o Filho encarnado; sem eles, não saberíamos quem é Deus. «O Redentor não é o Filho de Deus, mas o Filho de Deus feito carne: Jesus», distinção que importa ter presente. Por isso, «não existe um momento da vida de Jesus onde Ele não esteja em contacto com o mundo e o mundo em contacto com Ele. A humanidade do Filho de Deus é a Sua carne em con-tacto com o mundo, con-sentindo com o mundo» (G. C. Pagazzi).

A revelação cristã coloca Deus à altura do corpo e da história, das linguagens e das culturas, com as suas aberturas e possibilidades e com as suas ambivalências, ambiguidades e corrupções.

Como consequência, como sublinha o escritor F. Hadjadj, o cristianismo reclama a salvaguarda de uma mística da carne, que desmascare e supere a separação entre o corporal e o espiritual, que se manifesta, por exemplo, na surpreendente afinidade entre o jargão do materialismo e do hedonismo, tendencialmente licencioso, vulgar e consumista, e aquele espiritualista e etéreo, místico e sentimentalista, que defende a fuga do real para o ideal (hoje, tende a identificar-se com o virtual). Afirmar que o espírito é espiritual, parece decorrer de si. Que sejamos corpo também é dado que se nos impõe, ainda que, o que é estranho, pareçam ser os cristãos, cuja fé se edifica sobre a encarnação do Verbo e a sacramentalidade da realidade, aqueles que, em discursos e práticas, tendem a desconsiderar tal evidência. A liturgia, por exemplo, é um campo significativo em que o corpo é o grande ausente. Ora, a ousadia cristã e, talvez, a urgência cultural, estará no resgate daquilo que na matéria não se reduz ao material, ao neuronal ou ao químico, para que o corpo não seja reduzido a “coisa” que simplesmente se tem, que se alimenta e que faz exercício, a “máquina” que se estuda, em vista da sua melhoria orgânica, a “mente” cuja performance se potencia. Importa reconhecer na sensibilidade e na identidade sexuada do corpo, na sua ubicação espácio-temporal, na sua expressividade linguística e gestual, lugares simbólicos e operativos de forças espirituais que nos elevam e nos mantêm em vida. Resistindo à idolatria ou denunciando a sua profanação, o corpo é, de facto, lugar de ressonância do Espírito, exposição e custódia do mistério que Deus é.

O mistério da Encarnação implica-nos, pois, na atenção e na salvaguarda da força espiritual das nossas formas corporais e existenciais, linguísticas e culturais, lugares que são da presença do Verbo. Na carne do Filho de Deus – no seu contacto com o mundo – nos é dada a vida. Aí a reconhecemos e lhe poderemos corresponder.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.