É penoso e quase uma indesculpável ousadia escrever sobre a doença dos outros. Parece que, no caso da doença, sobretudo da doença grave, a experiência é a única garantia contra o que pode ser pouco mais que superficialidades e bons desejos. Insisto, porém, em escrever sobre o tema porque, por trágico acaso, vários amigos, alguns deles muito próximos, enfrentaram ou enfrentam ainda doenças graves. O choque inicial, a continuada preocupação e, sobretudo, as exigentes conversas pessoais dos últimos meses despertaram em mim um humilde desejo de ler e escrever sobre esse lugar nunca desejado.
Voltei a um livro que tinha lido no ano passado: “Entre dois reinos” (“Between Two Kingdoms”) de Suleika Jaouad. Ali se conta, na primeira pessoa, a experiência de uma jovem a quem, com apenas 22 anos de idade, é diagnosticada uma violentíssima leucemia, que a deixa com cerca de 35% de hipóteses de sobrevivência. Amarrada a uma cama de hospital, Suleika começa a escrever um diário que acaba por chegar às páginas do New York Times, sob a forma de uma coluna semanal: “Life, interrupted”. Um transplante de medula e quatro anos de tratamentos acabaram por trazê-la a uma cura ou, pelo menos, a um estado de remissão. O livro publicado em 2021 documenta tanto a doença como essa difícil reaprendizagem da vida depois da cura.
O título do livro (“Entre dois reinos”) faz eco de uma metáfora proposta por Susan Sontag em “Ilness as Metaphor” (1978): “Quem nasce possui uma dupla cidadania, do reino dos sãos e do reino dos enfermos. Ainda que cada um de nós prefira só ter de usar o bom passaporte, é inevitável que, mais tarde ou mais cedo, nos vejamos obrigados, ainda que só por um tempo, a reconhecermo-nos entre os cidadãos daquele outro lugar”. Para Suleika, acabada de chegar a Paris para começar a sua carreira profissional, a leucemia significou não só um regresso aos Estados Unidos, mas, sobretudo, a entrada num lugar e num tempo suspenso de outras regras e de outros ritmos: consultas, esperas, incertezas, tentativas, dores, insónias, solidão. Cidadã agora de outro reino, sem horizonte de retorno ao lugar deixado, Suleika dá expressão àquela sensação de exílio de si próprio e da sua existência que é, porventura, a cruz maior da doença. E, se tal posso ousar, também o é para quem acompanha: a súbita partida do reino dos sãos condena aquela espontânea sintonia do horizonte comum, do descontraído hábito do futuro. Instala-se, mesmo na mais íntima das relações, uma estranha arritmia, que reclama a suave e atenta vigilância do amor.
O testemunho de Suleika Jaouad é humano e humanizador.
O relato que Suleika Jaouad faz dos longos quatro anos desde dia do diagnóstico até ao início do processo de remissão coloca diante nós a dura realidade da constante, insaciável incerteza. Aos minutos somam-se as horas e depois os dias, os meses desprovidos da segurança de estar a caminhar do ponto A para o ponto B ou de, pelo menos, estar ainda a caminhar. O horizonte da cura começa por ser só uma remota hipótese para depois ganhar contornos mais definidos com o implante de medula óssea, mas ainda e sempre a sombra da morte, da dor, da perpétua incapacidade é uma invencível presença. Todos vivemos sob este espetro, mas a doença grave parece gerar, assim o dá a entender o livro, uma fragilidade congénita, um desconfiar-se mais ansioso, mais insistente que preenche os dias como um ruído de fundo. E isto mesmo depois da cura, já no período de remissão: o visto no passaporte do reino indesejado recorda e avisa.
Talvez por isso Suleika descobre que não pode voltar à vida anterior. Num certo sentido, não há essa possibilidade. Decide, então, partir em périplo através dos Estados Unidos da América ao encontro daqueles que lhe escreveram ou que conheceu (ou aos seus familiares) ao longo dos anos de doença e tratamentos. O livro transforma-se agora num diário dos encontros e, também, das longas horas de solidão ao volante de um velho Subaru. Este é, no desejo de dar substância ao regresso do lugar da doença, um lento rito de passagem que Suleika abraça na esperança de reencontrar e reencontrar-se nesse lugar dos sãos. Nesse sentido, é justo dizer-se que a autora descobre a inverdade ou, pelo menos, a insuficiência do título que tinha dado às suas crónicas jornalísticas: a “interrupção” que quase lhe foi fatal mostrou-se mais final do que teria antecipado, porque o “depois” só admite um habitar inteiramente novo da vida. Ali se mostra, ouso propor, a exigente “disciplina” do além da doença. Nenhuma experiência nos deixa indiferentes, mas a doença, sobretudo a doença grave, coloca em interdito o adiamento distraído do agora e reclama uma outra inteireza para as decisões, os projetos, o futuro. Para quem acompanha e recebe de volta no reino dos sãos, há também aqui lições a aprender, sob pena de se condenar a relação pela inadvertida nostalgia do antes.
O testemunho de Suleika Jaouad é humano e humanizador. Sem moralismos e também sem a pretensão de dizer a última palavra sobre uma experiência que é sempre irremediavelmente individual, “Entre dois reinos” faz a sãos, enfermos e regressados um convite a olhar de frente a realidade da doença e do seu impacto nas nossas vidas e relações.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.