Em 1983, Ronald Reagan, então presidente dos Estados Unidos, num discurso perante a National Association of Evangelicals, referiu-se à União Soviética como um Império do Mal (Evil Empire), recusando a ideia de equivalência moral entre o comunismo e o modelo de sociedade americano e Ocidental. Esta visão dicotómica do mundo, que foi sendo diluída ao longo das últimas três décadas, está a querer regressar à política internacional.
Em Junho de 1987, a discursar em frente à Porta de Brandenburgo, no muro de Berlim, o presidente americano, referindo-se ao líder reformista soviético, com quem mantinha uma relação amistosa, disse: “Secretário Geral Gorbatchov, se busca a paz, se busca a prosperidade para a União Soviética e a Europa Oriental, se busca a liberalização: venha aqui a esta Porta! Sr. Gorbatchov, abra esta porta! Sr. Gorbatchov, derrube este muro!”
Para Reagan, a queda do Muro de Berlim, que viria a acontecer dois anos depois, não se impunha pela força, exigia-se por ser a coisa decente que um líder que de facto procurasse o Bem devia fazer.
Reagan não ficou para a História como um pensador sofisticado ou profundo, mas será sempre lembrado como o presidente americano que levou à derrota do comunismo e da União Soviética. E como um orador com ideias claras. Mesmo que simples.
Qualquer manual de História prova que não há regimes perfeitos, mas há uns melhores que outros. E que todas as guerras são terríveis, mas algumas são justas de combater. Era nisso que Reagan acreditava e, como ele, a maioria dos ocidentais.
Mais do que um conflito permanente entre duas grandes potências, a Guerra Fria foi uma oposição entre duas ideias, duas visões radicalmente diferentes do Homem e da Sociedade. E quando o Muro de Berlim de facto caiu, resultado de uma indecisão burocrática apenas possível num regime em decadência absoluta, além de se declarar a vitória de um dos lados, acreditou-se que o modelo vencedor, sendo preferível, seria o que todos os povos, podendo, procurariam.
O pós-Guerra Fria libertou o Ocidente de inimigos relevantes, até ao 11 de Setembro. E, sem inimigos, o Ocidente deixou de se conseguir definir como melhor do que as alternativas. Era apenas o modelo vencedor, a que todos os outros acabariam por querer chegar.
Foi essa convicção que fez com que se acreditasse que Fukuyama tinha descoberto o Fim da História, encarnado nas sociedades democráticas liberais, e que uma espécie de Paz Perpétua, como Kant sonhara, seria possível. Sem se compreender isso, não se compreende o final daquelas quase quatro décadas e meia e o que aconteceu depois.
O pós-Guerra Fria libertou o Ocidente de inimigos relevantes, até ao 11 de Setembro. E, sem inimigos, o Ocidente deixou de se conseguir definir como melhor do que as alternativas. Era apenas o modelo vencedor, a que todos os outros acabariam por querer chegar. Nesse processo havia diferentes possibilidades, mas todas levariam ao mesmo lugar. Abandonar alguns aliados cujas práticas e valores eram incompatíveis com o código moral Ocidental (e que já não estavam em conflito com grupos apoiados pelo inimigo soviético), forçar a mudança, como se fez em algumas partes do mundo (Regime Change), ou abrir as portas, comerciar, exibir o modelo Ocidental e confiar que seria replicado. E foi quase isso que pareceu acontecer.
Apesar de os Estados Unidos serem a potência sobrante, a construção de um mundo multipolar e multilateral foi cultivando uma espécie de relativismo. Não era legítimo, ou era cada vez menos, querer mudar ou derrubar regimes (mesmo que se tenha feito isso mesmo várias vezes). A globalização fez o resto. O comércio e o capitalismo transformariam o mundo. Para isso, era preciso, primeiro, comerciar. Depois viria a democracia e a liberdade. Por arrasto.
Apesar do 11 de Setembro, quando o Ocidente compreendeu, com estrondo brutal, que ainda tinha inimigos que, acima de tudo, detestavam aquele modo de vida, estas quase três décadas e meia foram, maioritariamente, o passeio triunfal do modelo Ocidental. Ao mesmo tempo que, sem alternativa real, o Ocidente se descobriu confrontado desde dentro.
À medida que os anos passaram e as gerações iam esquecendo, ou já nem tinham vivido, o tempo da Guerra Fria (qualquer pessoa com menos de 45 anos), a ideia de que este modelo de sociedade era infinitamente melhor do que outro qualquer foi perdendo relevância e defensores activos. Com o tempo, quase só quem se lembrava dessa História cada vez menos recente discutia o mundo à luz das virtudes ocidentais. Sem inimigo externo, transformar o Ocidente era a única alternativa ao modelo Ocidental.
Nem há dois anos, gente nova do Ocidente rico manifestava-se às sextas-feiras contra os crimes ambientais do mundo moderno, emblema do capitalismo. A prosperidade tinha sido alcançada à custa de um modelo que inevitavelmente esgotava o planeta, afirmavam. Para uns, eram visionários, corajosos críticos de um modelo esgotado. A outros, recordavam a maioria dos pacifistas das décadas de 60 e 70, que pediam o desarmamento, mas sempre do Ocidente.
Entre eles e os que se lembram da queda do Muro, separava-os, sobretudo, o ponto de partida. Uns, olhavam para como teria sido o mundo se o outro modelo tivesse vencido. Os mais novos, encaravam o mundo em que vivem como o mundo que é para mudar, sem com isso quererem, pelo menos na maioria, o modelo alternativo que tinha sido derrotado em 1989. Um dos grandes equívocos dos últimos anos terá sido a relação entre estas duas visões do mesmo mundo. Os mais novos querem mudar o mundo que herdaram, como é costume. Os mais velhos achavam que estava a ser posto em causa um mundo que era, comparado com todas as alternativas anteriores, o melhor possível.
A 24 de Fevereiro deste ano, quando invadiu a Ucrânia, Vladimir Putin restaurou a ideia de modelos alternativos e da escolha política entre o Bem e o Mal. E, na exibição da sua solidariedade com a Ucrânia, os mais novos mostraram o valor que afinal davam ao fundamental do mundo em que vivemos.
Os mais novos querem mudar o mundo que herdaram, como é costume. Os mais velhos achavam que estava a ser posto em causa um mundo que era, comparado com todas as alternativas anteriores, o melhor possível.
A ocupação russa não é apenas ilegítima, injustificada, brutal. Ela parte de um pressuposto que não é aceitável. Aquele povo quer poder escolher o modelo de sociedade em que quer viver e, para tanto, escolher com quem se quer associar. Com a prosperidade, liberdade e democracia da Europa, por oposição a autocracia russa, e com a segurança da NATO, em vez da subjugação a Moscovo. Para além da questão fundamental da soberania e da ideia nacional, estão sobretudo em causa dois modelos de sociedade profundamente distintos. Um é melhor que o outro. E tanto os ocidentais mais novos como os mais velhos sabem-no.
Em 1982, Michael Novak publicou O Espírito do Capitalismo Democrático. Contra a ideia de que o modelo capitalista era moralmente vazio e incompatível com uma realização espiritual, Novak explica que o espírito do capitalismo democrático é moralmente superior porque promove e só pode existir em regimes democráticos, em economias de mercado, e em sociedades plurais. Porque cada um destes elementos alimenta os outros. E faltando um, os outros soçobrarão.
Novak não o diz assim, mas só pode haver liberdade religiosa em sociedades plurais. A liberdade de Acreditar num Deus que não se submete a nenhum poder ou, dito de outro modo, a ideia de que há um limite onde nenhum poder temporal pode chegar, é a base de qualquer democracia. E só pode existir numa sociedade de homens livres. Poder ter Fé e praticá-la é a primeira de todas as liberdades. E é uma liberdade absolutamente individual. Não existe Fé colectiva.
Invocar Ronald Reagan, a Guerra Fria ou o triunfo do capitalismo sobre o comunismo em 2022 pode parecer um exercício desesperado para regressar a um lugar seguro, onde se acreditava que era fácil distinguir o Bem do Mal. Em parte, será verdade. Mas é muito mais do que isso. É recordar que há sociedades onde os Homens se realizam mais. Moral, espiritual, materialmente ou de outra maneira qualquer. Que esses modelos de sociedade são melhores. E que é legítimo, justo e humano lutar por eles.
A alternativa, acreditar que tudo não passa da imposição de um modelo a quem não o quer e/ou nem o sabe usar, é recusar ao outro a nossa humanidade. É querer que sejam eventualmente felizes, mas à maneira deles. Que não pode nunca ser como a nossa.
É por isso que a guerra na Ucrânia é muito mais do que uma guerra tradicional, por território ou recursos, entre religiões ou culturas. É um combate entre ter ou não ter a possibilidade de escolher a Liberdade. É, como antes, um combate entre o Bem e o Mal.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.