O que (não) se viu no gesto de Francisco

Uma visita inesperada que gerou ruído. Francisco reza diante dos túmulos de Pio X e Bento XV; usando as palavras de outro Bento, Joseph Ratzinger, Francisco cumpre o ofício de “levar Deus ao mundo e o mundo a Deus”.

No passado dia 10 de abril, o Papa Francisco apareceu de surpresa na Basílica de S. Pedro, sem a sua habitual batina branca, para rezar diante dos túmulos de São Pio X e do Papa Bento XV. A visita, simples e silenciosa, foi rapidamente envolta em interpretações excessivas nas redes sociais, em canais de YouTube e outros meios de comunicação.

Uns concentraram-se no detalhe da roupa: “porque não foi o Papa vestido de branco?”. Seria um gesto simbólico? Um sinal de desprezo pela tradição? Outros ainda questionaram o significado de rezar junto ao túmulo de Pio X – frequentemente reclamado por setores mais conservadores da Igreja. Estaria o Papa a acenar àqueles que sempre o criticaram? Estaria a afirmar a memória de um Papa antimodernista, diante de todos os que recorrem a esta palavra para descrever o que pensam ser o grande mal da Igreja e do mundo? Não faltou diversidade nos comentários e especulações.

Todos estes comentários parecem esquecer dois elementos fundamentais. Primeiro, a história pessoal de Jorge Mario Bergoglio. Foi um impulso interior, um “movimento de alma” — o desejo de entrar numa igreja e confessar-se — que o levou a encontrar a sua vocação. Um impulso que, portanto, moldou a sua vida inteira. Não faz muito sentido, por isso, surpreender-se com o facto de que, mesmo doente, Francisco continue a deixar-se mover por urgências interiores que o levem a rezar. A roupa que veste, nesse contexto e no quadro atual da sua saúde, pode justamente tornar-se algo secundário. Esta urgência interior de estar com Deus, de rezar em silêncio, continua a acompanhar o Papa. E por vezes, como parece ter sido o caso, torna-se mais forte do que protocolos ou formalidades externas.

Esta urgência interior de estar com Deus, de rezar em silêncio, continua a acompanhar o Papa. E por vezes, como parece ter sido o caso, torna-se mais forte do que protocolos ou formalidades externas.

Segundo, a escolha dos dois túmulos revela não tanto uma posição política, mas uma leitura espiritual e profética do nosso tempo. A urgência não está na indumentária, mas na oração. Pio X é, para muitos, o Papa do combate ao modernismo. Mas é importante não esquecer que, para muitos dos seus colaboradores, foi recordado como o Papa que morreu triste. Os ventos nacionalistas sopravam na Europa numa tensão evidente e crescente. Nos seus últimos dias, Pio X assistiu à ascensão destes nacionalismos europeus que acabariam por desencadear a Primeira Guerra Mundial. Curiosamente, na publicação de 2023 “Omaggio a Pio X. Ritratti coevi” de Lucio Bonora, o Papa Francisco, recordando a trágica morte do seu predecessor a 20 de agosto de 1914, escreve no prefácio: “Pio X foi um Papa que chorou perante a [Primeira] Guerra Mundial, da qual foi considerado a primeira vítima, implorando aos poderosos que depusessem as armas”.

A Pio X seguiu-se Bento XV, o Papa esquecido. Bento XV, foi o grande articulador de uma tentativa (falhada) de travar a guerra. Na encíclica Ad Beatissimi Apostolorum, escrita ainda nos primeiros meses da guerra, o pontífice denunciava, com clareza devastadora, o absurdo do conflito com palavras impressionantes, que soam hoje como um eco do presente:

“Por toda a parte domina o terrível fantasma da guerra: quase não há lugar para outro pensamento na mente dos homens. Os combatentes são as nações mais poderosas e ricas da terra; e não é de estranhar que, munidas com as armas mais terríveis que a ciência militar moderna produziu, tentem destruir-se com requintes de horror.

A cada dia, a terra é regada com sangue recém-derramado, e coberta com os corpos dos feridos e dos mortos. Quem, ao vê-los assim, cheios de ódio uns pelos outros, imaginaria que são todos de uma mesma raça, da mesma natureza, membros da mesma sociedade humana? Quem reconheceria irmãos, cujo Pai está nos Céus?” (Ad Beatissimi Apostolorum, 1914)

As guerras de ontem e os nacionalismos de hoje

O nacionalismo que levou à guerra no tempo de Pio X e Bento XV não está ausente dos nossos dias. Pelo contrário, ganha novas formas e rostos. Quando políticos como J.D. Vance, nos EUA, invocam São Tomás de Aquino e o conceito agostiniano de ordo amoris para justificar a política America First, percebemos o modo como o discurso religioso, que não deve ser excluído ideologicamente do mundo político, pode ser e é usado como arma de arremesso.

O mesmo se pode dizer de certos discursos em torno da guerra entre Rússia e Ucrânia, onde as respetivas Igrejas Ortodoxas servem por vezes como legitimadoras de identidades em conflito. Na Índia, no Sudão ou em Myanmar, o nacionalismo mistura-se com ideologias religiosas ou seculares para justificar perseguições, opressões e exclusões. E, claro, não se pode esquecer o conflito em Israel e na Palestina, onde o nacionalismo não perde ocasião alguma para mostrar a suas filactérias.

Francisco não é ingénuo. Conhece os riscos da manipulação da fé. E é por isso que escreveu recentemente aos bispos dos Estados Unidos, reafirmando que a imagem de Deus no rosto de cada migrante — como na Sagrada Família em fuga para o Egito (Cf. Pio XII, Exsul Familia, 1 de agosto de 1952) — está acima de qualquer doutrina nacionalista. Pedindo-lhes atenção pastoral e espiritual para com os migrantes, a sua carta afirmava: “O verdadeiro ordo amoris que deve ser promovido é aquele que descobrimos ao meditar constantemente sobre a parábola do ‘Bom Samaritano’, ou seja, ao meditar sobre o amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção.” (Cf. Carta aos Bispos dos EUA, 10 de fevereiro de 2025) Esta perspetiva é profundamente humana e evangélica, pois o ordo amoris, anunciado por Jesus e recordado por Francisco, não faz do interesse individual/nacional um absoluto, mas o amor a Deus no próximo (nota 1). Naturalmente que esta afirmação do Pontífice é incómoda para quem deseja usar a religião como barreira ou instrumento político. Talvez por isso tantos tentem, constantemente, desvalorizar ou reinterpretar os gestos do Papa Francisco à luz de categorias extrínsecas ou enviesadas.

A interpretação do gesto de Francisco centrada na batina ou na oração a um Papa por ele ser antimodernista, é pobre, redutora e enganosa.

Parece-me, portanto, que a interpretação do gesto de Francisco centrada na batina ou na oração a um Papa por ele ser antimodernista, é pobre, redutora e enganosa. É pobre, porque apenas vê superfície onde há interioridade. É redutora, porque transforma um apelo universal à paz e à oração num jogo de sinalizações políticas. E é enganosa, porque desvia os olhos da urgência real do nosso tempo: um mundo que se desumaniza à medida que se fecha.

Francisco reza diante dos túmulos de Pio X e Bento XV; usando as palavras de outro Bento, Joseph Ratzinger, Francisco cumpre o ofício de “levar Deus ao mundo e o mundo a Deus” (Angelus, 29 de junho de 2011) e convida-nos a fazer o mesmo. Não para escaparmos da realidade, mas para nos deixarmos tocar por ela, levá-la ao diálogo com Deus, à intercessão dos santos e à busca interior da palavra e da ação justas.

 

Nota 1 Recordemos que Sto Agostinho afirma que o amor (ou ordo amoris) que faz a cidade de Deus inclui um justo desprezo de si (contemptum sui). Expressão muito forte para o modo como hoje significamos estas palavras, mas que se refere à não absolutização do interesse próprio — algo que podemos referir tanto ao interesse individual como nacional (Cf. St Agostinho, Cidade de Deus, livro XIV, cap. 28)

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.