Não é que não seja verdade; só não precisamos de a dizer como ela é: muitas vezes, as pessoas não estão prontas para a ouvir.
Com um atraso de largos meses, só vi esta semana o aclamado filme ‘Assim nasce uma estrela’, protagonizado por Bradley Cooper e Lady Gaga que surpreenderam com interpretações incríveis. Curiosamente, assisti à longa metragem logo depois de ter ouvido uma belíssima homília de domingo de Pentecostes, em que num certo momento o sacerdote partilha algo que lhe tinha acontecido recentemente: no funeral de uma criança de 3 anos, que celebrou há umas semanas, ouviu um dos presentes dizer que “Deus faz sempre tudo bem e que estas coisas fazem parte da vida” e contrariou-o. “Não porque Deus não faça sempre tudo bem”, garantiu-nos, mas “como é que eu vou dizer aos pais daquela criança – a mãe nem conseguiu estar presente na cerimónia – que está tudo bem? Não está! O que disse foi que aquilo não devia ter acontecido. E que tínhamos que conseguir encontrar esperança, apesar de tudo”.
Parece bom senso, lido assim, mas acontece menos vezes do que devia, sobretudo porque caímos muitas vezes na tentação de justificar tudo o que acontece com a certeza de que Deus sabe o que faz. Sabemos que sim, que Ele sabe o que faz. Mas isso não torna mais fáceis os acontecimentos, as ações, os sentimentos, as decisões. E tantas vezes as pessoas não estão prontas para ouvir aquilo que é a verdade. Ou a nossa verdade. A nossa, aquela que conseguimos ver sem as nuvens da angústia, sem o nevoeiro da tristeza, com a clareza de quem não está no meio do turbilhão apenas a tentar respirar.
No filme ‘Assim nasce uma estrela’ – e atenção que vou mesmo contar o fim, portanto, quem ainda não viu está a tempo de fechar este texto agora! – Jack é um homem atormentado por um passado cruel, uma imagem errada de si próprio e um talento inegável. Como tantas estrelas da indústria musical debate-se com problemas de álcool e de drogas; Ally é descoberta por Jack num bar, ele transforma-a numa estrela pop, casa-se com ela e entre ambos há só amor. E se por um lado ele tenta uma reabilitação para não a envergonhar nem ser um fardo, ela está disposta a colocar a [fulgurante] carreira em pausa para cuidar dele.
Quantas vezes magoamos, somos cruéis, desatentos com quem nos rodeia em nome de uma auto-proclamada verdade que precisa de preparação para ser acolhida?
Só que há um momento, uma frase, um pequeno diálogo quase no fim da história que mudará tudo: o agente de Ally garante a Jack que ele voltará a beber e a destruir-lhe a carreira dentro de uns tempos, e que espera que nessa altura eles já não estejam juntos. “Ela nunca te contará isto porque te ama demasiado”, atira.
Jack suicida-se durante o último espetáculo da digressão de Ally, enquanto ela o espera em palco para voltarem a cantar a música que fez dela uma estrela. Trágico? Bastante. Dramático? Também. Com alguma ligação ao que acontece todos os dias na nossa vida? Tantas. Porque tal como os pais daquela menina (que pais estarão, alguma vez, preparados para a morte de um filho? E que conforto lhes damos ao afirmar que “faz parte da vida” e que “Deus sabe o que faz” numa altura em que a dor deve ser tão grande que tudo o resto não importa?), Jack não estava pronto para ouvir. Para lutar contra os seus demónios e sair vencedor de uma guerra que deveria ter tido muitas mais batalhas.
Quantas vezes magoamos, somos cruéis, desatentos com quem nos rodeia em nome de uma auto-proclamada verdade que precisa de preparação para ser acolhida? Quantas vezes criticamos opções, gestos, atitudes, comportamentos sem saber o que está por detrás de cada um; sem quereremos saber que história é a daquela pessoa, quais as feridas que não estão prontas para começarem a cicatrizar e quais as que já podem ser hidratadas para que não deixem marca? Quantas vezes nos esquecemos de que tudo, tudo o que dizemos deixa uma marca no outro? “Há palavras que nos beijam como se tivessem boca”, diz-nos Alexandre O’Neill num dos seus mais conhecidos poemas. “São como um cristal, as palavras / algumas, um punhal”, avisava por seu lado Eugénio de Andrade.
Como cristãos, não nos devia ser difícil seguir o exemplo maior daquilo que é a generosidade, a paciência e a sensibilidade para com o próximo, sendo relativamente fácil decidir se queremos que as nossas palavras beijem ou firam.
E precisamos de encher o nosso coração de sabedoria e de amor, para que possamos ajudar a curar e a manter os olhos num futuro cheio de esperança. É nisso que reside a nossa grande força, alicerçada na fé que muitos não compreendem, mas que temos obrigação de respeitar: a certeza de que, no final, ficará tudo bem. Mas até lá, estamos autorizados a sofrer e a ajudar os outros a lidar com os seus sofrimentos. Porque é dele, também, que renascemos mais fortes e mais sábios. À imagem de Jesus Cristo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.