O que a vida espera de nós

O modo como vivemos o que nos é dado viver, as escolhas que fazemos, as decisões que tomamos podem resgatar-nos e restaurar-nos, mesmo quando nos confrontamos com uma situação que não desejamos de todo.

Durante muitos anos, ao ler os relatos que os evangelistas fazem do caminho percorrido por Jesus até ao Calvário, refugiava-me na Sua divindade. Atenuava, assim, na minha mente e na minha alma, a brutalidade do Seu sofrimento e da humilhação. Mas é na Sua humanidade que Jesus faz o caminho para o Calvário. É Deus feito Homem quem é torturado. É d’Ele que escarnecem os soldados. É a Ele que tiram as vestes e a quem cospem. É Ele quem é crucificado.

Perante tudo isto, Jesus Cristo não grita nem reclama por justiça ou vingança. Ele morre como sempre viveu: numa entrega total e incondicional, por cada um de nós. E o Seu desejo de nos salvar não é abafado pela dor atroz. Na Cruz, Jesus sussurra a Deus Pai, com ternura, que nos perdoe. No madeiro, sob um sofrimento extremo, o Seu olhar é ainda um olhar de misericórdia, um olhar que vê para lá da violência gratuita e reconhece a dignidade humana em cada homem, em cada mulher, em mim. O Seu corpo torturado e humilhado, em farrapos, abre-se à fragilidade da Humanidade, e dá-lhe futuro e esperança. A Sua vida consumada traz fecundidade à Morte, e esta deixa de ser um abismo.

Procuro, sob a luz deste Amor resgatador, olhar para estes quase três meses de guerra na Ucrânia. Dos relatos avassaladores que nos chegam, cada pormenor parece deixar-me sem chão. Sinto gravadas, no meu corpo, a imagem de um cadáver torturado, de mãos atadas, numa rua de Bucha, a imagem de um tanque de guerra a disparar sobre um ciclista indefeso e a imagem de uma mulher grávida, ferida, a ser transportada numa maca, após o bombardeamento de uma maternidade em Mariupol. Incrédula, pergunto-me como chegamos aqui. E fico neste deserto árido, angustiada, em busca de respostas que não existem. Ao longe, na escuridão, vejo três homens crucificados, erguidos no madeiro, abandonados entre a Terra e o Céu.

Procuro, sob a luz deste Amor resgatador, olhar para estes quase três meses de guerra na Ucrânia. Dos relatos avassaladores que nos chegam, cada pormenor parece deixar-me sem chão.

No seu livro «O Homem em Busca de um Sentido», o psicoterapeuta Viktor Frankl fala-nos da sua luta pela sobrevivência nos campos de concentração e extermínio. Por várias vezes ao longo do livro, o autor refere que mais prisioneiros morreram por falta de esperança do que por falta de comida ou de medicamentos. Frankl reconhece que foi fundamental, para todos os que sobreviveram, a mudança de atitude em relação à vida. Nenhum dos prisioneiros teria imaginado passar por tamanhas atrocidades e a maioria deles teria planos que não chegaram a concretizar. Mas, como escreve o psicoterapeuta, «não importa verdadeiramente o que esperamos da vida, mas antes o que a vida espera de nós». O modo como vivemos o que nos é dado viver, as escolhas que fazemos, as decisões que tomamos podem resgatar-nos e restaurar-nos, mesmo quando nos confrontamos com uma situação que não desejamos de todo.

Reconheço esta atitude em Jesus, na Cruz. Reconheço esta atitude num povo que continua erguido, apesar de massacrado pela guerra. Reconheço esta atitude em pessoas concretas, do meu dia a dia. E como são luzeiros para mim! Algumas, face ao sofrimento incontornável, dão máxima expressão à realização humana, e transformam o que seria uma tragédia pessoal num cumular de bênçãos. Com as suas escolhas e decisões, elevam-se acima do seu destino. E, consigo, elevam toda a Humanidade.

Citando, de novo, Viktor Frankl, «a forma como um homem aceita o seu destino e todo o sofrimento que ele acarreta, a forma como carrega a sua cruz, concede-lhe bastas oportunidades – mesmo nas circunstâncias mais difíceis – para dar um sentido mais profundo à sua vida». Saibamos nós, com Jesus Ressuscitado, dar resposta ao que a vida espera de nós. Principalmente em momentos de desilusão, quando julgamos que já não esperamos nada da vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.