A 3 de Outubro, no dia da Unidade Alemã, que celebra a reunificação da Alemanha em 1990, Kaja Kallas foi ao Twitter publicar uma fotografia sua com a mãe (e um irmão?) tirada em Berlim, em frente à porta de Brandenburgo, do lado Leste, em Junho de 1988. Nesse dia, o pai ter-lhe-á dito “respira fundo. Este é o ar da liberdade, que vem do outro lado”. No ano seguinte, o Muro cairia; dois anos depois, a Alemanha reunificava-
se e em breve deixaria de haver o lado de lá. Kaja Kallas nasceu na Estónia há 45 anos. O pai é Siim Kallas, um político que viria a ser Comissário Europeu; a mãe, Kristi, foi deportada pelos soviéticos para a Sibéria quando tinha seis anos, com a mãe e a avó, e por lá ficou até aos dez anos de idade. Kaja, hoje, é primeira-ministra da Estónia e dos líderes europeus que mais tem apoiado a Ucrânia. Estas coisas marcam.
Para quem não viveu ou não se lembra desse tempo, pode ser difícil perceber como era quando havia o outro lado. Hoje há países não democráticos, regimes autoritários e totalitários, ditaduras, autocracias e teocracias. E democracias em crise e em risco. Mas não há, como então havia, uma internacional da falta de liberdade. Por enquanto, não há, como então havia, o lado de lá. Mas não deixou de haver ameaça.
Nos últimos meses, o optimismo do final do século passado foi posto em causa. A tese de que a democracia se expandiria com o fim da Guerra Fria, do apoio soviético (e às vezes ocidental) a regimes não democráticos, e a reboque do comércio internacional, tem parecido desmentida por vários lados. A China beneficiou da globalização, mas não se democratizou nem nada que se pareça. A Rússia foi trata pelo Ocidente, e pela NATO em particular, como potencial parceira, e nem por isso deixou de ser agressiva e perigosa. E na própria Europa há democracias recentes em fracas condições. O começo dos anos 20 deste século tem sido de pessimismo.
A democracia, afinal, não será muito exportável, nem fácil de manter. Há um ano e meio, quando os Estados Unidos saíram inopinadamente do Afeganistão, ouviram-se dois coros de críticas. Uns, acusaram os americanos de terem saído à pressa, sem avisar os aliados e sem preparar o terreno para que o regime mais ou menos democrático e aberto resistisse. Outros, acusaram os americanos de terem falhado, essencialmente, porque os valores não se exportam e a liberdade e democracia ocidentais – que esses críticos normalmente acham de má qualidade – não se dão bem noutras paragens, nem devem ser impostas a povos que não as querem ou sabem usar.
Quando se abdica de alguma liberdade em nome de alguma ordem, nunca se perde apenas um pouco. Há sempre alguém disposto a escolher por nós a liberdade a que temos direito. E é sempre menos.
O argumento não é especialmente original. Quando começou a democratização do Sul da Europa, primeiro em Portugal, depois em Espanha, mais tarde na Grécia, também havia quem dissesse que os europeus do Sul não eram talhados para a democracia. Mais valia um regime dirigido que os guiasse ordeiramente para o Bem. Ou, pelo menos, para o lado certo. Por estes dias, quem duvida que a Liberdade seja uma ambição de todos os
povos que a descobrem ou experimentam, faria bem em olhar para a Ucrânia, para o Afeganistão ou para o Irão.
Ao contrário dos russos, que fogem da mobilização militar de Putin mais por medo de morrer do que por se recusarem a matar, logo em Fevereiro e Março houve ucranianos imigrados a voltar a casa para combater pelo seu país, pelo direito a existirem e a escolherem livremente como querem viver – em liberdade e em democracia, como os ocidentais. No Irão, que já foi um país muito desigual mas aberto, onde as mulheres usavam saias pelo joelho, imagine-se, há raparigas, rapazes, mulheres e homens a manifestarem-se nas ruas dispostos a morrer pela liberdade de as mulheres não serem obrigadas a esconder-se debaixo de um véu, controladas por uma polícia de costumes. E, de caminho, pela liberdade de não viverem sob as ordens de uma teocracia despótica. Elas e eles sabem o risco que correm, mas o desejo é mais forte.
No Afeganistão, depois de um atentado a uma escola de raparigas, facilitado pela forma como os talibãs sempre as trataram, as mulheres saíram à rua em manifestações pelo direito a ir à escola em segurança, pela possibilidade de manter uma réstia da liberdade que experimentaram quando os talibãs foram depostos com a ajuda dos americanos. Para a maior parte de nós será estranho, distante, assustador, mas há gente disposta a morrer pela Liberdade. Na Ucrânia, no Afeganistão, no Irão. Mas também na China E, não menos estranho, distante ou assustador, há gente disposta a matar para a impedir. Na Rússia, no Afeganistão, no Irão. Mas também na China. Quase sempre em nome de uma ideia de Bem que querem impor. Ao mesmo tempo, nas democracias mais ou menos maduras do Ocidente, crescem movimentos que se queixam de haver por aqui liberdade a mais. Olham – ou olhavam – para Putin e para as suas declarações sobre a decadência moral do Ocidente, da falta de respeito pelas tradições e achavam – e ainda acham – que sim, que se tem ido longe demais. Que já não se respeita nada e se pode tudo.
A esta gente do lado de cá que acha que um pouco menos de liberdade nos fará bem a todos, convém mostrar-lhes a coragem dos ucranianos, das afegãs, das iranianas (e de muitos iranianos, também), e o que os move. Quando se abdica de alguma liberdade em nome de alguma ordem, nunca se perde apenas um pouco. Há sempre alguém disposto a escolher por nós a liberdade a que temos direito. E é sempre menos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.