No passado mês de maio foi aprovado o Relatório do Parlamento Europeu sobre a situação de saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos na União Europeia (UE) no contexto da saúde das mulheres. Apesar de os seus ventos não terem chegado cá, importa abordá-lo por, mais uma vez, a liberdade estar ao dispor de quem sabe o que é melhor para os seus cidadãos.
Para além de se assumir a teoria de género como verdade universal, o que não é novidade, também se considera, sem grande surpresa, o aborto como um direito humano. Ponderando-se os “diversos obstáculos jurídicos, quase jurídicos e informais” ao acesso ao aborto (como prazos e motivos limitados ao seu acesso) instam-se “os Estados-Membros a eliminarem e combaterem os obstáculos ao aborto legal”, depreendendo-se – numa interpretação que esperamos ser errada – um juízo de favorabilidade genérica a um aborto livre e sem prazos. Tendo o relatório um sentido ideológico claro, não deixa de considerar os que pensam de modo diferente como “opositores aos direitos sexuais e reprodutivos e à autonomia das mulheres”, que “influenciaram significativamente a legislação e as políticas nacionais com iniciativas retrógradas”.
Atendendo-se à “recusa de cuidados médicos com base em convicções pessoais”, salienta-se “que a cláusula de consciência de uma pessoa não pode interferir com o direito do doente ao pleno acesso aos cuidados de saúde e aos serviços.
Não sendo nada disto surpreendente, deu-se um passo mais. Atendendo-se à “recusa de cuidados médicos com base em convicções pessoais”, salienta-se “que a cláusula de consciência de uma pessoa não pode interferir com o direito do doente ao pleno acesso aos cuidados de saúde e aos serviços”. Lamenta-se, ainda, que “a prática comum nos Estados-Membros permita que profissionais médicos (…) se recusem a prestar serviços de saúde com base na chamada cláusula de consciência, o que conduz à recusa de serviços de aborto por motivos de religião ou consciência (…)”. Ligando esta questão com a mencionada intenção de eliminar as barreiras ao aborto legal, defende-se que “um dos obstáculos mais problemáticos é a recusa de prestação de cuidados médicos com base em crenças do foro íntimo, nos casos em que os profissionais de saúde muitas vezes não realizam abortos em nome das suas convicções pessoais”.
A estocada final aparece ao defender-se que “um progresso seria considerar essa objeção como uma recusa de prestação de cuidados médicos, e não como uma pretensa objeção de consciência”. Como fundamento, argumenta-se que a objeção de consciência “não se trata de um direito absoluto” e que este não deve ser utilizado para bloquear o acesso a serviços a que legalmente as pessoas têm direito. Em suma, se bem vemos e na ausência de referências expressas, constatamos que, de acordo com esta visão, nem o direito à objeção de consciência, nem o direito à vida intra-uterina serão considerados direitos absolutos. Quanto ao direito ao aborto, nada sendo dito explicitamente, não seria difícil arriscar…
Querendo focar-nos apenas no tema da objeção de consciência, não deixa de ser curioso verificar que um tema tão difícil como o aborto é aqui facilmente resolvido e apenas com uma referência à palavra “feto” em todo o texto, quando, salvo melhor opinião, a sua vida também está em jogo.
Sobre a objeção de consciência importa notar que esta é um ato do foro íntimo destinado a proteger as pessoas contra a interferência do Estado em matérias que os sujeitos reputam como privadas. Garante-se, como tal, a liberdade individual dos cidadãos, que, pensamos nós, ainda é essencial num Estado de Direito democrático.
Com efeito, é inequívoco (em tese, claro) que uma sociedade que se diga humanista deve respeitar a autonomia privada – o direito que as pessoas têm de prosseguir o tipo de vida que querem. E aqui é essencial que se respeite o direito que o ser humano tem de se desenvolver humanamente de acordo com o tipo de pessoa que é e que pretende ser. Deste modo, valoriza-se, e assegura-se, não só a autonomia de cada pessoa, como o tão afamado pluralismo que se gosta de fazer eco, mas que, também a lei, deve respeitar. Ligando ambos os pontos, só há verdadeiro pluralismo se os sujeitos puderem ser fieis às suas convicções morais e se a lei não lhes impuser condutas que estes tomem por moralmente inaceitáveis.
Ao obrigar-se um sujeito a atuar contra a sua própria consciência, impõe-se-lhe, em termos que consideramos inadmissíveis, por desumanos, que seja este a suportar as conceções morais da sociedade em que vive, postergando-se, ademais, o seu espaço de liberdade e autonomia.
Ao obrigar-se um sujeito a atuar contra a sua própria consciência, impõe-se-lhe, em termos que consideramos inadmissíveis, por desumanos, que seja este a suportar as conceções morais da sociedade em que vive, postergando-se, ademais, o seu espaço de liberdade e autonomia.
Voltando ao Relatório, e talvez de modo inesperado para os seus subscritores, não tinha o aborto por uma questão tão moralmente inequívoca que justifique o atropelo da objeção de consciência nos termos aí sufragados e acima referidos. Sendo a consciência determinante do ser pessoa, e não deixando de levar a lógica subjacente àquele relatório até ao fim, seria hediondo que se impusesse aos profissionais de saúde a opção entre irem contra as suas mais profundas convicções morais e a de poderem desenvolver a sua atividade profissional. O atropelo da objeção de consciência e a sua lógica leva a que a discussão se desloque para este plano. E mesmo que se sufrague o direito que as mulheres têm ao seu corpo, impõe-se, parece-nos, que se considerem todos os outros sujeitos envolvidos que, no Relatório em causa, são – (talvez não) surpreendentemente – omitidos para quem opta por um caminho tão radical.
Sendo evidente a manipulação ideológica dos direitos humanos a que aqui se dá cobro, não deixa de ser irónico que, numa sociedade híper sensível às suscetibilidades individuais, se queira impor condutas de grande violência ética e moral.
Sintetizando, e como nos ensina o filósofo Joseph Raz, se os ideais de autonomia e de pluralismo não chegam para que um sujeito possa ser coerente com as suas convicções morais, então tais ideais de pouco ou nada servem.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.