O paradoxo da generosidade ou como ser ator

Uma professora de teatro dizia-me muitas vezes que um ator em palco tem de ser generoso. Acho que nunca cheguei a perceber realmente o que ela queria dizer, até hoje.

A palavra em tétum[1] para generosidade laran-luak significa literalmente interior amplo, disseram-me. E fiquei o resto do dia a pensar neste paradoxo. Afinal, aquele que é generoso mais do que dar ou entregar-se, tirar um pouco de si para dar aos outros, é aquele que cria um vazio interior, um espaço amplo onde cabe alguém. Ser generoso não é dar, mas estar pronto para receber. Estar disponível para quem vier, para quem necessitar desse espaço que é nosso e que se torna casa para um hóspede. Para os que o habitam com sons, palavras, risos e canções partilhadas. Para os que só querem estar em silêncio, acompanhados no deserto, abraçados pelo olhar. E para os que precisam de o encher de gritos, lágrimas e dor. Dar espaço a um tempo abdicado, que não controlamos e não nos pertence.

Ser generoso é criar um lugar onde alguém pode depositar o seu tesouro mais precioso, as suas alegrias e esperanças, mas também os seus medos, fragilidades e cansaços e ali sabê-los cuidados e guardados. É permitirmo-nos povoar desses tesouros, não como quem possui, mas como quem aprende e quer compreender. Ser generoso é dar espaço para que o outro possa ser mais. Ouvindo, compadecendo-se e dando as mãos.

Uma professora de teatro dizia-me muitas vezes que um ator em palco tem de ser generoso. Acho que nunca cheguei a perceber realmente o que ela queria dizer, até hoje. Mais do que representar, querer fazer ou propor, um ator tem de escutar, receber e interiorizar o que está à sua volta. Estar inteiramente descentrado de si, livre, desocupado, para poder ouvir, compreender e sentir com o outro. Aperceber-se das circunstâncias, da história, daquilo que a personagem está a viver. Deixar-se tocar profundamente, para poder reagir.

O desenrolar das cenas não é, na verdade, um conjunto de pequenas ações que cada ator propõe, mas antes um desencadear de várias reações. Em palco, tornamo-nos dependentes da generosidade uns dos outros. Assim, o papel do ator só fará sentido se existir um outro com quem dividir a cena, o espaço e o tempo. Um outro que esteja disposto a receber aquilo que temos para partilhar. O jogo teatral constrói-se, desta forma, através de uma troca constante. O outro dá-me algo, que eu recebo de braços abertos e olhar atento, para ser capaz de lhe responder com algo que seja genuíno, que seja consequência da interiorização do que foi partilhado, e que espero ser recebido com a mesma disponibilidade.

O jogo teatral constrói-se, desta forma, através de uma troca constante. O outro dá-me algo, que eu recebo de braços abertos e olhar atento, para ser capaz de lhe responder com algo que seja genuíno, que seja consequência da interiorização do que foi partilhado, e que espero ser recebido com a mesma disponibilidade.

O exercício teatral, implica esta abertura do interior. O ator tem de se despir das suas certezas e seguranças, do seu ego, da constante autoconsciência e autoavaliação, tirar sem medos as máscaras que o escondem para se tornar vulnerável, neste ambiente seguro, onde se reconhece com humildade, que não somos sozinhos, que precisamos do outro, permitindo uma história escrita em conjunto. O processo artístico consiste muito num encontrar de um caminho partilhado, de pontos em comum, saber tornar a experiência do outro também minha.

Mas Stanislavski, no seu método para atuação, vai ainda mais longe. Na construção da sua personagem, o ator deve ter um conhecimento profundo do seu interior e do seu subconsciente, bem como do da personagem. Desta forma, é capaz de encontrar motivos internos e pessoais que justifiquem a intenção da personagem. O ator deve incorporar o vivenciar da personagem. Mais do que uma representação deve criar uma vida e uma existência no seu íntimo, dando-lhe voz e materialização, através das suas próprias experiências pessoais. E isso implica uma grande disponibilidade interior. Para ao mesmo tempo não sermos nós que estamos ali, mas deixar que a personagem use aquele espaço que é nosso, que é íntimo, mostrando-o a alguém.

O teatro como na vida, ao contrário do cinema ou da televisão, implica diretamente aqueles que estão sentados do outro lado da sala. Não há uma tela que nos afasta e que nos protege. No teatro somos constantemente implicados, pela imprevisibilidade, pelo risco, pela fragilidade. Somos chamados também a participar do jogo, a esvaziarmo-nos, a escutar, a deixarmo-nos tocar e a re-agir. É esta capacidade de ter um interior amplo, que nos permite ser para o outro e darmo-nos. Que nos permite ser generosos. Tanto no palco como na vida.

 

[1] Língua cooficial de Timor-Leste

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.