Vasco Pulido Valente, um dos cronistas mais brilhantes dos tempos recentes, escrevia a certa altura, e com regularidade, que “o Mundo está perigoso”. VPV, como era conhecido, queria dizer, entre outras coisas, que um mundo (pós Muro de Berlim) onde a conflitualidade regional deixara de ser gerida à distância pelas duas potências, União Soviética e Estados Unidos da América, e resultava da natural e habitual propensão dos homens para a guerra, corria o risco de, sendo um lugar de maior incerteza, ser mais perigoso. Nos dias que correm, o mundo está não só mais perigoso mas também muito menos simples do que tinha sido nos últimos anos.
Por muito que custe repetir recorrentemente o exercício de regressar a 1989, a verdade é que é preciso olhar para o que foi o mundo depois do fim da Guerra Fria para percebermos o que estamos a ver e como estamos a ler a realidade.
O fim da Guerra Fria, ao fazer desaparecer o inimigo direto, a União Soviética Comunista, implicou uma maior exigência das populações ocidentais para com os seus governos e, sobretudo, para com a avaliação dos seus aliados.
Em tempos de guerra, e a Guerra Fria era uma ameaça de guerra, era fundamental ter aliados. Nalguns casos, ou em muitos, mesmo que os aliados fossem pouco recomendáveis, era preferível que estivessem do lado de cá, se a alternativa fosse estarem do lado de lá. Os Estados Unidos e os seus aliados combatiam as derivas comunistas na América Latina, ou o risco de isso acontecer em Portugal, por exemplo, não tanto por razões de superioridade moral das democracias liberais ocidentais, mas porque sabiam que a alternativa – as vitórias comunistas ou pro-soviéticas – implicava perder aliados em geografias fundamentais.
O fim da Guerra Fria alterou as regras do jogo. Circunstâncias diferentes impunham reações, e aliados, diferentes. Num mundo que se pretendia que fosse o triunfo das democracias liberais, o convívio com regimes liderados por facínoras, ditadores, autocratas, assassinos e outras espécies de carrascos das populações e/ou das vizinhanças, tornou-se inaceitável. De tal modo que se foi forjando a ideia de que existiria uma comunidade internacional guiada por valores e princípios, e não pelo habitual calculismo dos interesses nacionais. Idílica ou pontualmente, essa ideia foi fazendo algum caminho. A ponto de se criar a ilusão de que havia uma espécie de dever de intervenção e ingerência face a regimes notoriamente criminosos. Esta ilusão durou pouco. Mas deixou marcas.
Por maior superioridade moral que as democracias liberais ocidentais tenham, e têm, o seu destino não é o de serem polícias do mundo ou defensores do bem. E de se aliarem exclusivamente a outras democracias liberais. Não se ganham guerras só com os bons. Mesmo que sejam guerras justas.
Por maior superioridade moral que as democracias liberais ocidentais tenham, e têm, o seu destino não é o de serem polícias do mundo ou defensores do bem. E de se aliarem exclusivamente a outras democracias liberais. Não se ganham guerras só com os bons. Mesmo que sejam guerras justas.
É evidente que, por razões internas e externas, os regimes ocidentais, as democracias liberais, têm preferência por um mundo com mais regimes democráticos. Mas não têm nem a possibilidade, nem a vontade suficiente (inclusive militar), para impor um mundo assim.
Os últimos tempos foram um bom retrato desta dificuldade. O que a Rússia fez na Ucrânia é, à luz de qualquer critério, inaceitável. E o que a Rússia pretende com aquela agressão é-nos, a nós, democracias ocidentais (e em particular europeias), especificamente ameaçador. É isso que explica a condenação quase unânime da Rússia pelas nossas opiniões públicas, e a disponibilidade para apoiar a Ucrânia.
Defender o direito de a Palestina existir como Estado não obriga a apoiar as acções do Hammas, ou a recusar o direito de Israel a existir. Assim como o inverso, defender o direito de Israel existir em segurança é compatível com recusar os colonatos ou criticar o perigoso governo de Netanyahu.
O mesmo critério de análise pode ser usado para o que se tem passado entre o Hamas e Israel. Mas dificilmente nos resolverá todos os dilemas. O que o Hamas fez no dia 7 de Outubro é um óbvio acto terrorista repugnante, dos mais violentos e graves de que temos memória, e, mais relevante, que implica o direito de Israel o travar, no imediato, e de pôr termo a essa ameaça a médio prazo. Mas uma leitura simples da realidade não nos levará muito longe. Qualquer espécie de paz que dure para além desta guerra há-de necessitar do apoio do Egipto, da Arábia Saudita e dos Estados do Golfo. Nenhum destes regimes é especialmente recomendável. Mas ignorá-los num processo destes seria um erro fatal. O regime saudita, que decapitou e desmembrou um cidadão no interior da sua embaixada na Turquia, é o mesmo de que necessitamos para estabelecer qualquer solução regional que dure.
Mais ainda. Defender o direito de a Palestina existir como Estado não obriga a apoiar as acções do Hamas, ou a recusar o direito de Israel a existir. Assim como o inverso, defender o direito de Israel existir em segurança é compatível com recusar os colonatos ou criticar o perigoso governo de Netanyahu.
Ao longo dos últimos anos, a Europa, e os europeus, acreditaram que era possível ser-se uma potência soft. Apoiar os países em desenvolvimento, promover algumas reformas em troca de apoio e cooperação, recusar a linguagem do poder e usar a linguagem dos direitos. É preferível. Mas não é suficiente. Esta transformação em curso, que obriga a fazer equilibrismo em vez de cortar a direito, pode dar à União Europeia uma maior relevância. Mas custará muito à Europa, e sobretudo aos europeus, aceitar que os conflitos não são simples e os lados bons e maus facilmente identificáveis. O mundo está, de facto, perigoso. E, para surpresa de muitos, não é um lugar simples.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.