Quando os filósofos gregos começaram a perguntar-se sobre o mundo, havia algo que os inquietava particularmente e que marcava toda a sua forma de o olhar: se tudo está em constante mudança, se o rio nunca tem a mesma água, se a cobra troca completamente de pele e se o pato deixa cair penas para ter outras novas, o que são o rio, a cobra e o pato? Dito de outra forma, o que é aquilo que é, se tudo está sempre a mudar? O que é que define o rio, a cobra e o pato? Ou, quiçá mais difícil ainda, o que é o homem? As respostas foram-se sucedendo e ainda hoje a filosofia se debruça sobre esta questão. “O que é o ser?” é uma das eternas interrogações filosóficas. Os gregos chegaram a introduzir a noção de substância, natureza ou essência: aquilo que é mais profundo e permanece apesar das mudanças, aquilo que subjaz às características que facilmente captamos pelos sentidos e que tão facilmente se alteram, fazendo que o cão seja cão e o homem seja homem. O passo seguinte, de chegar a um consenso sobre o conteúdo dessa essência, não o chegaram a dar.
A dada altura, o Cristianismo chegou à Grécia e encontrou a Filosofia e, com isso, surgiu uma nova pergunta, que marcou para sempre a reflexão filosófica. Na Idade Média, a Filosofia foi posta ao serviço da Teologia, para ajudar a compreender racionalmente Deus, criador de todas as coisas. Então, a grande questão passou a ser “porque é que as coisas são, quando podiam não ser? Porque é que existe o mundo, quando podia não existir?”. Para os gregos, que não conheciam a ideia de criação “a partir do nada”, o mundo e a matéria eram eternas: a matéria existia desde sempre e para sempre e a preocupação era perceber o que é essa matéria que sempre é, mas se transforma constantemente. Para o horizonte judaico-cristão, porém, o mundo tinha vindo à existência a partir do nada, pela acção criadora de Deus. Deus é eterno, mas o mundo e a matéria — e portanto o universo e o homem — poderiam não existir: são contingentes, isto é, não necessários. Se existem, é porque Deus assim o quer.
No mundo medieval, havia pois espaço para a Ciência e para a Filosofia, não tanto como áreas de saber pertinentes por si mesmas, mas enquanto meios para chegar a Deus, o grande princípio orientador de toda a mundivisão da época.
A este respeito, S. Tomás de Aquino encontra nas criaturas uma “ruptura” que em Deus não existe e que os gregos não podiam conceber, por considerarem eterna a matéria. É que, em Deus, essência e existência coincidem: existir faz parte da natureza de Deus, faz parte da sua essência, do seu ser. Existir é parte da definição de Deus. Nas criaturas, por sua vez, existência e essência não são a mesma coisa. Num dia existem, mas no outro já não. São finitas e limitadas. Assim, a existência não faz parte da definição das coisas do mundo, pois elas podem desaparecer a qualquer momento. Na verdade, o ser das coisas e a sua permanência na existência é-lhes conferido por Deus, o Ser Supremo, Absoluto, Perfeito e Bom, que tudo cria e que dá às coisas parcialmente o que Ele tem em plenitude. As criaturas são então participantes do ser divino.
Portanto, para o homem medieval, o mundo criado é reflexo do ser de Deus. A par dos Livros Sagrados, o “Livro da Natureza” é fonte do conhecimento sobre Deus e revela algo sobre a sua pessoa. Nesse sentido, estudar a criação era oportunidade para saber mais sobre Deus, que devia ser louvado pelas suas maravilhas. No mundo medieval, havia pois espaço para a Ciência e para a Filosofia, não tanto como áreas de saber pertinentes por si mesmas, mas enquanto meios para chegar a Deus, o grande princípio orientador de toda a mundivisão da época.
Com efeito, segundo a Teologia e a Filosofia do tempo, o homem sai de Deus e para Deus volta, sendo chamado a aperfeiçoar-se, a realizar-se, a atingir o seu fim último, que é o encontro com Deus. Este encontro só se alcança plenamente na vida eterna, mas já aqui seria possível antecipar, de algum modo, a felicidade que daí vem, através da vida contemplativa e do reto agir moral, que tem Deus como o fim último do homem e as coisas como fins intermédios. Sim, as criaturas têm valor em si mesmas, mas não têm valor absoluto e são pois tidas como bens que conduzem para Deus. Inverter esta ordem e pôr as criaturas acima do Criador seria uma troca indevida do Bem Último por bens efémeros, dando espaço ao pecado e, em última instância, à infelicidade.
Assim, com S. Agostinho, todo o homem em busca da beatitude deveria dizer «criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós» (Confissões, I, 1).
O autor escreve de acordo com o anterior acordo ortográfico.
Texto originalmente publicado na Companhia dos Filósofos
Foto: veeterzy, Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.