O mundo, a pandemia de COVID-19 e uma fotografia

Estamos centrados na pandemia e, no entanto, há muito a acontecer pelo mundo fora. Mas, aquela imagem da Praça de São Pedro não me saía da cabeça. O Papa Francisco tocou-me no coração e na razão.

«Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos. À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento.» Papa Francisco, Benção Urbi et Orbi, 27 de Março de 2020

Para quem estuda as Relações Internacionais a pandemia que nos aflige é um desafio analítico exigente. Quando comecei a escrever este artigo sabia que o meu tema andaria à volta da COVID-19, mas não tinha ainda decidido o ângulo de ataque. Pensei em várias hipóteses, mas acabei sempre por não cruzar a meta. Como vão poder ver foi um périplo histórico e mundial.

O meu primeiro instinto (quase) sempre é olhar para a História e, em particular, para os meus queridos amigos Gregos e Romanos. Ainda hoje, a descrição de Tucídides sobre a Peste e os seus efeitos sobre a democracia ateniense de Péricles é primorosa. Uma das regras da minha vida é nunca perder uma oportunidade para falar ou escrever sobre Tucídides.

É claro que a história tem muitos mais «casos». Para além da pandemia de 1918-1919 que vitimou cerca de 50 a 100 milhões de pessoas, podemos mergulhar mais no passado e relembrar a grande crise europeia que resultou da Peste Negra de meados do século XIV. Uma das cidades mais atingidas devido à forte densidade popular foi Veneza. Morreram cerca de 75% dos seus habitantes. Roger Crawley descreve-nos o impacto físico, emocional e estratégico dessa hecatombe na história desta cidade imperial. Todas estas lições da História eram importantes, mas aquela imagem do Papa Francisco na Praça de São Pedro não me saía da cabeça.

Perdeu-se muito tempo e o surto e a sua passagem além-fronteiras poderiam ter sido minorados. Nos últimos dias, têm chovido críticas à OMS e à sua actuação neste caso concreto. No fundo, como tantas outras organizações internacionais há tanto de técnico como de político.

Depois pensei que me deveria focar nas acções da China ao longo desta pandemia. Em primeiro lugar, o regime chinês foi aplaudido pela ajuda em tempos difíceis e pela capacidade de construção de hospitais de campanha em tempo record. Em países como a Itália, a ajuda da China foi bem-vinda e preciosa, sobretudo porque o início da resposta europeia foi titubeante.

No entanto, a acção do regime chinês revelou aquilo a que os gregos chamaram de Hubris. O entusiasmo começou a desvanecer. Não só a China não tinha revelado a história toda como tinha pressionado a Organização Mundial de Saúde (OMS) para que não fosse «alarmista». Na prática, perdeu-se muito tempo e o surto e a sua passagem além-fronteiras poderiam ter sido minorados. Nos últimos dias, têm chovido críticas à OMS e à sua actuação neste caso concreto. No fundo, como tantas outras organizações internacionais há tanto de técnico como de político. No entanto, as ramificações da propaganda de Beijing são tantas, que é impossível condensá-las. E também porque a procissão ainda vai no adro, pois há muito a analisar e a averiguar, tem de ser objecto de um artigo mais longo. E depois … aquela fotografia do Papa que não me saía da cabeça.

O foco das nossas atenções na China fez com que não olhássemos com atenção para outros países na região. A Coreia do Sul tem combatido de forma extraordinária esta pandemia, provando uma vez mais que a democracia liberal e a influência do legado de Confúcio não são incompatíveis. Outras democracias liberais como Taiwan têm também sido exemplares. A entrevista da Ministra dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Sul, Kang Kyung-wha, à BBC vale a pena ser lida. Não só pelo respeito pelos seus cidadãos e pela vida humana, como pela noção muito clara sobre o seu papel enquanto actores de um mundo globalizado. Pensei, pensei, mas, aquela fotografia do Papa não me saía da cabeça.

E, caros leitores, ainda nem sequer olhámos para Washington e para os ziguezagues da actual Administração norte-americana. O espectáculo da ausência de liderança moral, científica e diplomática da superpotência deixa-me muito triste. E, pelo meio, Vladimir Putin reforçou o seu trono em Moscovo, a Arábia Saudita «apertou» o preço do petróleo com objectivos políticos e a Coreia do Norte reforçou o seu papel habitual de pária. E na União Europeia passámos a ter uma ditadura, a Hungria de Viktor Orbán. Estamos centrados na pandemia e, no entanto, há muito a acontecer pelo mundo fora. Mas, aquela imagem da Praça de São Pedro não me saía da cabeça.

Porquê? Há muitas razões, mas talvez a mais importante seja a sua capacidade de transmitir solidariedade de uma forma solene e, ao mesmo tempo, comovente. O Papa Francisco tocou-me no coração e na razão.

Nas suas palavras, «É a vida do Espírito, capaz de resgatar, valorizar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espectáculo, mas que hoje estão, sem dúvida, a escrever os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiros e enfermeiras, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, curadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho.»

O Papa Francisco deu o exemplo na Praça de São Pedro sendo o nosso o de o acompanhar ficando em casa. Por entre os pingos de chuva o Papa aqueceu-me a alma. O abraço de Jesus é esperança no nosso presente e no nosso futuro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.