O mar jaz, nós corremos

Para que servem as férias se não houver momentos de paragem e reflexão, momentos de simples imersão em nós e no mundo natural, ao qual pertencemos, mas do qual nos fomos afastando?

A breve pausa estival proporciona momentos assim: contemplar, de um ponto alto, como a imensidão quase impassível do Atlântico encontra a fervilhante e ruidosa multidão humana, em busca de bronze e lazer. Irresistivelmente, ecoam na memória versos lapidares de Pessoa, alguns com ecos clássicos: o mar jaz, indiferente, defronte de nós; um mar anterior a nós e que, decerto, a nós sobreviverá com a sua perene maré. Tal como os desenhos que as crianças traçam laboriosamente na areia húmida, o indício da nossa existência “três ondas o apagam”.

Na verdade, poucas coisas nos atraem tanto como o mar. Fascinante promessa de aventura e aterrador abismo, a sua impassibilidade ritmada traz-nos calma, e a sua fúria avassaladora põe em perspectiva a pequenez humana, que ainda assim nunca deixa de tentar dominá-lo. No entanto, nos sentidos de quem observa, depressa a impressão causada pela azáfama humana na praia e à sua volta se sobrepõe ao rumor calmante das ondas e à beleza majestosa do oceano. Para mais, o fervilhar normal das conversas e brincadeiras é por vezes ultrapassado, na areia e na rua, pelo barulho da tecnologia, como se fosse para alguns um imperativo inescapável cobrir os sons naturais com música rimbombante. Na verdade, não se trata apenas de abafar o som do mar e os gritos das gaivotas, mas também o “ruído” dos pensamentos, mostrando incomodidade, ou até aversão, perante o silêncio. Para que servem as férias se não houver momentos de paragem e reflexão, momentos de simples imersão em nós e no mundo natural, ao qual pertencemos, mas do qual nos fomos afastando?

Vista de cima, essa massa humana que a moda do bronzeado arrasta para a beira-mar assemelha-se a um exército de formigas em perpétuo movimento, como que cumprindo uma tarefa inexorável até ao último suspiro. Parece que, tal como é forçoso trabalhar, é forçoso ir de férias, sempre na certeza de que o trabalho espera ao virar da esquina. As férias são essenciais para tentar recuperar de um ano intenso, mas sabe-se à partida que não serão suficientes e que, com frequência, se aumentará o cansaço, sobretudo quando implicam longas viagens e diferentes fusos horários.

As férias acabam por ser mais uma das facetas da constante luta por atingir e exibir padrões elevados de riqueza e bem-estar. Os humanos, os seres mais racionais da criação, estão desde há milénios presos a uma teia de deveres e obrigações que alcança até o âmbito do lazer; e estão constantemente a alargá-la, criando, com auxílio da tecnologia, novos meios para se aprisionarem. E, neste mundo superpovoado e globalizado, tudo se massificou.

Com efeito, esta luta desgastante não é uma novidade, nem tão pouco a reflexão sobre mais este exemplo da fragilidade humana. A Bíblia, repositório de experiência e sabedoria perenes, lembra que tudo é vaidade e que a inexorável morte tudo deixará para trás. Ainda há pouco era recordada na eucaristia dominical esta passagem milenar do Livro do Eclesiastes (2,21-23): “De facto, que resta ao homem de todos os trabalhos e preocupações que o desgastam debaixo do sol? Toda a sua vida é sofrimento, sua ocupação, um tormento. Nem mesmo de noite repousa o seu coração. Também isso é vaidade.”

No mundo pagão clássico, de que somos herdeiros, encontramos também essa reflexão. Particularmente notável é o exemplo literário e existencial do poeta epigramático latino, de origem hispânica, Marco Valério Marcial (Augusta Bilbilis, hoje Calatayud, entre Março de 38 – 41 e cerca de 102-104). Como qualquer provinciano ambicioso, partiu jovem para Roma, em busca de um sucesso de nível global. Para isso, era essencial encontrar patronos generosos, como Mecenas o fora para com Virgílio e Horácio. Porém, a queda em desgraça de Séneca e do seu círculo condenou-o à vida cansativa de pequeno cliente, cheia de obrigações, bajulações e desconsiderações, em troca de reduzidas ofertas, por vezes em géneros. Os seus epigramas lapidares eram o instrumento fundamental para cair nas boas graças dos grandes, desejosos de obter algum tipo de imortalidade através da poesia. Teve, por isso, de sacrificar a sua dignidade ao louvor do tirânico imperador Domiciano e de muitos dos seus cúmplices, algo que a nova dinastia não esqueceu, deixando o poeta em maus lençóis nos últimos anos.

A Marcial interessava sobretudo a análise da experiência humana da grande metrópole que era a capital imperial, em finais do primeiro século da nossa era: hominem pagina nostra sapit – “a minha página tem sabor a homem” (10, 4)[1]. Nos seus poemas, o tom satírico mistura-se com a pungência do sofrimento humano, partindo desde logo do quotidiano trabalhoso do próprio poeta. Sem a tecnologia que marca o nosso tempo, mas com a quase ausência de cuidados médicos e a profunda injustiça social, as exigências da vida em Roma eram difíceis, mesmo para os livres e ricos.

São vários os poemas em que Marcial interpela amigos e conhecidos, criticando-lhes a azáfama constante e exortando-os a viver a vida: “Adia a vida quem deseja exceder a riqueza paterna/ e desmedidos, lhe atulham os átrios, os retratos” (2, 90); “«É amanhã que vou viver, é amanhã» – dizes, Póstumo, sempre/ […] Esse amanhã, Póstumo, quando é que chega?/ A que distância fica esse amanhã? onde pára ou aonde se deve procurar?/ […] Viver hoje, Póstumo, já é tarde:/ sensato é quem, Póstumo, viveu ontem.” (5, 58). Por outro lado, o resultado de todo esse esforço insalubre ficará cá para outros usufruírem sem qualquer gratidão: “Porém tu, pobre Titulo, nem velho consegues gozar a vida/ […] Apanha, ajunta, arrebata, possui: é tudo para deixar./ Orgulhoso pode teu cofre amarelecer com abundância de moedas/ […] que jurará teu herdeiro que tu nada lhe deixaste.” (8, 84). Por isso, Marcial afirmava que seria mais feliz na aurea mediocritas campestre (“A mim, uma lareira e um tecto, que não desdenhe os negros fumos,/ me basta, e uma fonte a correr e uma relva por tratar/ […] tenha a noite com sono, tenha os dias sem querelas” (2, 90)), e elogiava os que decidiam regressar à terra natal a tempo. A nostra Hispania é um paraíso por oposição à vida tormentosa da capital, e “não é vergonha que a vida procure o que lhe resta,/ quando a fama já tem o que lhe basta” (1, 49).

Por fim, perante o ambiente pouco favorável da Roma de Trajano, Marcial, já idoso, regressou a Bilbilis mais de trinta anos depois da partida. Contudo deparou-se com a falta de reconhecimento dos seus concidadãos ibéricos e sentiu uma imensa nostalgia pela vida cansativa, mas animada e famosa que tinha em Roma. Supõe-se que morreu amargurado, incapaz de viver sem a azáfama da grande cidade, onde se sentira exaurido pelas exigências da vida.

Então como agora, nós, humanos, sentimos essa insatisfação, esse nunca estar bem onde se está e com o que se tem. Também nós corremos até não termos mais forças, por vezes parecendo que fugimos de nós próprios – mesmo em férias. Entretanto, “a perene maré/ Flui, enchente ou vazante” (Ricardo Reis).

[1] MARCIAL. Epigramas. Tradução de Delfim Ferreira Leão, José Luís Brandão e Paulo Sérgio Ferreira. Introdução e notas de Cristina de Sousa Pimentel, IV vols. Lisboa: Edições Setenta, 2000-2004.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.