O jornalismo e a democracia

É um breve balanço do jornalismo atual no nosso país que se segue, desde logo admitindo que, como jornalista, me arrisco a não ser 100% isento.

A liberdade de expressão é uma trave mestra da democracia. Essa liberdade envolve todos os cidadãos, mas ela é fundamental para que exista um jornalismo sério. Quem, como é o meu caso, trabalhou como jornalista ainda alguns anos sujeito à censura prévia, preza muito essa liberdade.

Mas o jornalismo, onde se leem e se ouvem tantas notícias e tantos comentários, não deve ser imune a críticas. É um breve balanço do jornalismo atual no nosso país que se segue, desde logo admitindo que, como jornalista, me arrisco a não ser 100% isento. Desenvolvo aqui algumas ideias referidas no meu artigo de Março de 2022, também sobre jornalismo.

Factos e valores

Antes de mais, convirá apreciar uma distinção feita frequentemente a propósito de jornalismo – a distinção entre factos e opiniões. A distinção tem razão de ser, claro, mas pode conduzir a simplificações que deformam a realidade.

Quando se fala de opiniões logo se pensa em valores, que aparentemente não intervêm em matéria de facto. Ora a verdade é que, quando se noticia um mero facto, existe sempre uma série de juízos de valor implícitos. Desde logo, porque se noticia aquele facto e não outros? Há uma infinidade de factos que não são noticiados. Depois, como se torna público esse facto? Na abertura de um telejornal? Com uma manchete na primeira página do jornal? E uma fotografia num jornal em papel ou num “site” noticioso pode dizer muito sobre um implícito juízo, positivo ou negativo, sobre a pessoa fotografada. Etc.

Quando se fala de opiniões logo se pensa em valores, que aparentemente não intervêm em matéria de facto. Ora a verdade é que, quando se noticia um mero facto, existe sempre uma série de juízos de valor implícitos. Desde logo, porque se noticia aquele facto e não outros? Há uma infinidade de factos que não são noticiados.

Comparando com o que se passava antes do 25 de Abril de 1974, quando a censura prévia impedia a publicação de qualquer assunto considerado negativo para o poder político, podemos perguntar: se não fosse o jornalismo, hoje saberíamos de muita coisa feia que acontece? Certamente que não. Nem sempre é agradável tomar conhecimento de certas coisas negativas, mas tal é indispensável para que se corrijam os desvios à lei e à ética.

E também será justo dizer que, frequentemente, o que aparece nos “media” leva o Governo a tomar medidas, que de outra forma se manteriam provavelmente adiadas. Aconteceu com a necessidade de contratar mais vacinas, por exemplo, e em muitos outros casos.

O jornalismo mudou

Mas o jornalismo de hoje, comparado com o que existia há 50 anos, tem muitas diferenças. Atualmente todos os órgãos de informação funcionam 24 horas por dia. Os jornais da manhã (os da tarde desapareceram), que dantes permitiam aos jornalistas decidir com calma a manchete do dia seguinte e os outros títulos principais, agora mantém um “site” noticioso que procuram atualizar em permanência. O mesmo se diga dos outros “media”, nomeadamente rádios e televisões. Acresce que várias empresas de televisão possuem hoje canais noticiosos a funcionar ao longo do dia e da noite.

Quer isto dizer que todos os “media”, sem exceção, estão envolvidos numa concorrência permanente de todos contra todos, cada um tentando ser o primeiro a transmitir a notícia. Ora esta pressão sobre os jornalistas coincide com a debilidade financeira da maior parte das empresas de informação, que reduz – por vezes, dramaticamente – a capacidade para tomar decisões editoriais acertadas e rápidas por escassez de meios humanos.

O que implica duas consequências. Por falta de dinheiro, as redações dos jornais, das rádios e das televisões estão, na sua maioria, muito reduzidas, o que não ajuda a aplicarem as regras exigentes de um jornalismo sério. E essa limitação é agravada pela pressão de alguns proprietários de “media” para que estes ganhem leitores, ouvintes e telespectadores, praticando um jornalismo sensacionalista.

Por falta de dinheiro, as redações dos jornais, das rádios e das televisões estão, na sua maioria, muito reduzidas, o que não ajuda a aplicarem as regras exigentes de um jornalismo sério. E essa limitação é agravada pela pressão de alguns proprietários de “media” para que estes ganhem leitores, ouvintes e telespectadores, praticando um jornalismo sensacionalista.

Não creio que ajudas financeiras do Estado aos jornais, rádios e televisões fosse uma solução aceitável. Se o poder político subsidia órgãos de informação, mais tarde ou mais cedo vai querer uma contrapartida da parte dos subsidiados – uma informação mais simpática para os governantes do momento. Assim se poria em causa a independência informativa.

Mas admito que, se for garantida, sem margem para dúvidas, a independência jornalística, se poderá discutir a hipótese de apoios do Estado. Será, porém, difícil distribuir com justiça apoios a jornais, rádios e televisões, dada as grandes diferenças existentes entre esses “media”.

As redes sociais

Importa lembrar que a principal concorrência de que os jornalistas são alvo vem sobretudo das redes sociais. Aí, quem as segue escolhe a rede ou as redes com que o consumidor de informação mais se identifica. Mas não irá encontrar nas redes sociais uma informação equilibrada e séria, antes estas lhe oferecem aquilo que ele porventura mais deseja – não a procura da verdade, mas a confirmação dos seus preconceitos. Ora esse é um problema para a democracia.

É o que permite, por exemplo, que Trump ainda hoje proclame que ganhou as eleições presidenciais de 2020, contra dezenas de tribunais e de outras fontes a garantirem que J. Biden foi eleito sem fraudes. E que milhões de americanos, fanáticos seguidores de Trump, finjam acreditar na mentira do seu ídolo político.

Não admira que Trump, grande divulgador das “fake news”, das notícias falsas, se encontre no mundo sem lei das redes sociais. Uma possibilidade negativa que a internet abriu, a par de tantos benefícios que trouxe.

Pluralismo em Portugal

Dito isto, há que reconhecer que, apesar de todas as limitações, a democracia portuguesa pode contar com um jornalismo que, não sendo perfeito, tem uma qualidade muito razoável. E consegue um interessante grau de pluralismo. Quem não gosta de um jornal, de uma rádio ou de uma televisão, pode em geral mudar para um outro órgão de informação da mesma natureza.

Existem, porém, questões complexas que não devem ser simplificadas. Uma democracia pluralista admite todas as opiniões? Ou rejeita quem proclama o ódio ao adversário político? É aceitável dar voz aos inimigos da democracia? Onde traçar a “linha vermelha”?

Os jornalistas enfrentam estas questões, não num plano teórico, mas no seu trabalho diário. Tal como o Estado deve assegurar um amplo espaço de liberdade, mas nem por isso é neutro, assim é desejável que os “media” democráticos se abram a um pluralismo de opiniões.

Dada a dimensão relativamente estreita do espaço público em Portugal, não é possível que cada corrente política disponha de jornais, estações de rádio e de televisão para transmitir todos os pontos de vista que existem na sociedade. Exige-se, por isso, sensibilidade e bom senso a quem cabe decidir, ao nível dos “media”, aquilo que se publica e como. Ora não me parece que, nesta matéria, haja grandes motivos para censurar o jornalismo que entre nós se pratica.

Exige-se, por isso, sensibilidade e bom senso a quem cabe decidir, ao nível dos “media”, aquilo que se publica e como. Ora não me parece que, nesta matéria, haja grandes motivos para censurar o jornalismo que entre nós se pratica.

Casos positivos

Uma estação televisiva do Estado, como é a RTP, foi no passado muito criticada por veicular sistematicamente os pontos de vista governamentais. Mas atualmente penso que críticas desse tipo deixaram de ter razão de ser: a informação da RTP já não é, felizmente, a “voz do dono”, como no passado por vezes aparentou ser. O que só prestigia os seus jornalistas.

Já foi mais evidente o interesse do poder político e económico por, de alguma forma, controlar a informação produzida pelos “media”. Mas não existem órgãos de comunicação social sem uma base empresarial. E aí temos, pelo menos, um caso positivo. Trata-se do jornal Público. Criado por um grupo de jornalistas, então no semanário Expresso, que foi buscar o indispensável apoio financeiro ao empresário Belmiro de Azevedo.

Pois o grupo SONAE continua a apoiar financeiramente o jornal e continua sobretudo a manter a independência jornalística que foi timbre de Belmiro. Este empresário percebeu que essa independência era indispensável ao prestígio e à afirmação do jornal, atitude que permanece da parte dos sucessores de Belmiro de Azevedo.

Razões de queixa

Existem, sem dúvida, muitas razões de queixa do jornalismo praticado atualmente no nosso país. Critica-se, por exemplo, o jornalismo que se torna sensacionalista e populista para ganhar audiências. Ou o jornalismo que se demite das suas obrigações e recorre em alto grau aos diretos televisivos, em vez de apresentar sínteses elaboradas daquilo que se passa, separando o essencial do acessório.

Algumas televisões apostam demasiado em transmissões diretas – dos debates parlamentares, por exemplo. É mais barato e dá menos trabalho, mas não é jornalismo. Por outro lado, o jornalismo português devia fazer, com mais frequência, uma análise crítica de certas notícias antes de as emitir. São notícias cuja mera divulgação equivale, muitas vezes, a condenar pessoas na praça pública.

Algumas televisões apostam demasiado em transmissões diretas – dos debates parlamentares, por exemplo. É mais barato e dá menos trabalho, mas não é jornalismo.

Por outro lado, têm-se ouvido críticas ao jornalismo por dar muito “tempo de antena” às questões em que o Governo se envolveu, e sobre as quais não parece falar inteiramente verdade, em vez de dar primazia aos graves problemas que o país enfrenta, como a pobreza ou o fraco desenvolvimento económico.

Uma qualidade aceitável

As regras do bom jornalismo são conhecidas. Como atrás referi, nem sempre as infrações às saudáveis normas jornalísticas decorrem de falhas dos jornalistas, mas são antes resultado de pressões de quem emprega os jornalistas, pressões agravadas pela débil situação financeira da maioria das empresas de informação.

Não vivemos num mundo ideal. Há que reconhecer que, não sendo perfeito, longe disso, o jornalismo que se pratica entre nós apresenta, em geral, uma qualidade aceitável. Cabe também aos consumidores de matéria jornalística contribuir, com a sua exigência e a sua crítica, para que essa qualidade melhore. É que sem jornalismo digno desse nome a democracia perde sentido.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.