Na sequência do relatório Sauvé, elaborado pela Comissão Independente sobre os Assuntos Sexuais na Igreja em França, está hoje, na ordem do dia desse país, a possibilidade de se levantar o segredo de confissão sempre que estiverem em causa crimes sexuais cometidos contra menores. “A lei da República prevalece e a Igreja não se pode colocar acima das leis do Estado…”. O tema não é novo, mas os perigos que se levantam são assustadores.
Defende-se, contra a manutenção do sigilo da confissão, que este levou ao encobrimento de casos de crimes sexuais e que, não se admitindo o seu levantamento, a Igreja coloca-se acima da lei, sendo esta uma forma de separatismo, por não se conformar com as exceções à regra do sigilo profissional previstas no Código Penal. Alguns chegam mesmo a dizer que a admissão do segredo de confissão sem exceções é o mesmo que permitir a outras confissões religiosas defenderem que as suas regras estão acima das leis do Estado. Como fundamento diz-se, numa formulação impossível de discordar, que o segredo de confissão não pode impedir a proteção da dignidade da vida e das pessoas, devendo comunicar-se à justiça todos os casos de violência sexual.
Porém, e ao contrário do que se disse acima, o segredo de confissão tem um âmbito totalmente diferente das leis do Estado. Partindo da indispensável e essencial separação entre a Igreja e o Estado, aquela apenas se impõe a si, e no seu seio, o segredo de confissão, não ambicionando a imposição das suas regras morais a nível estadual. É, por isso, totalmente falacioso o argumento de que a Igreja se comporta como aqueles que pretendem impor a sua religião ao Estado. É também falso que, por impedir a sinalização de casos de violência sexual, seja o segredo de confissão que obsta à proteção da dignidade da vida e das pessoas. Qualquer padre (como qualquer cidadão) que, fora do confessionário e obedecendo às leis do Estado, tome conhecimento de casos de violência sexual, deve denunciá-los.
Qualquer padre (como qualquer cidadão) que, fora do confessionário e obedecendo às leis do Estado, tome conhecimento de casos de violência sexual, deve denunciá-los.
O Estado não deve entrar no confessionário e não se deve imiscuir em temas que pertencem exclusivamente ao foro da religião, como é o caso do sacramento da penitência. Neste sentido, duvida-se também da eficácia de uma tal medida uma vez que se o que se pretende é a denúncia de quem não se entrega, o levantamento do sigilo fará com que as pessoas em causa simplesmente não se confessem. Esquece-se também que, muitas vezes, o confessor não sabe quem é o penitente impossibilitando-se a obrigatoriedade de denúncia. A não ser que, num passo mais, o Estado imponha a sua identificação antes do sacramento da penitência para que, se necessário, o confessor denuncie o crime perpetrado.
O segredo de confissão, colocando-se num âmbito totalmente distinto das leis do Estado, é um espaço de total liberdade e confidencialidade em que o penitente se confessa a Deus e em que se assegura a sua liberdade de palavra. Claro que se o penitente se confessa de um crime, o confessor não o pode entregar à justiça, devendo, contudo, aconselhar a que o faça. Também a criança que é vítima de um crime de abuso e que, na confissão, o relata ao sacerdote, não deve ver a sua confiança traída – apesar de o sacerdote ter o dever de a aconselhar, fora da confissão, a falar com quem de Direito. O sigilo é, sem dúvida, indispensável à liberdade de consciência do penitente, o qual deve ter a certeza, sem qualquer dúvida e em qualquer momento, de que o diálogo sacramental permanecerá no segredo do confessionário. E este sigilo mantém-se ainda que o confessor não conceda a absolvição.
Impedir o sigilo consubstancia, portanto, uma inaceitável ofensa contra a liberdade dos crentes. É uma violação da liberdade religiosa e da liberdade de consciência de cada cidadão em que o Estado se imiscui em assuntos da esfera mais íntima das pessoas como são a sua consciência e a sua liberdade. E isto vale quer para o penitente quer para o confessor. Nem a Igreja se deve imiscuir no Estado nem o Estado na Igreja.
Fotografia: João Ferrand
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.