O efeito ChatGPT: assustar para pensar

O ChatGPT é um potente sistema que, reconheço, intimida quem o experimenta, mas temos o extraordinário poder de o pensar em função de tais valores. Procuremos, pois, faze-lo com o empenho que é preciso.

“…vi aquilo e paniquei. Entrei em negação: é assustador. E adiei o tema. Podia ser que desaparecesse. Não desapareceu (…). Mas só nos apercebemos do verdadeiro potencial quando começamos a interagir com aquilo.” Luís Pedro Nunes, 2023.

No final do ano passado foi disponibilizado na internet, em acesso livre e gratuito, a versão experimental de um sistema de inteligência artificial, que “dialoga” com humanos, como se fosse humano, e digita, na hora, o que se lhe pede. Pouco tempo antes, havia sido apresentado um sistema que faz ilustrações “artísticas”, tal como este escreve. Presumo que, mais tarde ou mais cedo, surja um outro que combine estas expressões, se é que não existe já. Revistas, jornais, livros… sítios como este Ponto SJ, poderão ser feitos – escritos, ilustrados e difundidos, de modo scripto, áudio e vídeo – com breves instruções, sem esforço e próximo da perfeição.

O cenário faz-me lembrar certos contos de fadas: caso a personagem principal, necessite ou deseje, benignamente, alguma coisa extraordinária, seres fabulosos, com dons que transcendem os dos humanos, usando varinhas de condão ou outras artimanhas, proporcionar-lhas-ão num ápice. Se estes contos revelam, como Bruno Bettelheim explicou no seu maravilhoso livro “Psicanálise dos contos de fadas”, significados profundos da nossa limitada e falível condição (humana) e do que engendramos para a superar, os mencionados sistemas podem muito bem ser o resultado de um trabalho que, como humanidade, temos feito para, nalgum dia, concretizarmos o ancestral desejo de obtermos, no imediato, tudo o que nos aprouver.

Esta leitura não escamoteia o princípio da realidade. Ao tomarmos consciência dele, o sistema ChatGPT – sigla de Generative Pre-Trained –, aqui em destaque, incomoda. E não tem esse efeito apenas em filósofos sensíveis a questões tecnológicas; muita gente ligada aos jornais, à política e ao ensino começou a “panicar”, como diz Luís Pedro Nunes, jornalista do Expresso.

Porque será? Por o sistema dominar uma infinidade de dados que dificilmente conseguimos imaginar? Por estar ao alcance de qualquer um, com bons ou maus intuitos? Por poder enganar-nos e não termos como saber? Por prometer superar a nossa inteligência? Por poder veicular ideias falsas e malignas? Por poder manipular mentes em função de interesses particulares? Por poder contribuir para afundar mais valores como a verdade, a democracia, a honestidade? Por tudo e isto e mais do que isto?

Era de esperar que, um dia, estas perguntas saíssem dos meios de reflexão restritos em que têm estado e surgissem no espaço público. Estão aí agora para, se tivermos vontade, as discutirmos. Até porque o futuro, a que tanto apelamos, depende substancialmente do entendimento a que chegarmos, neste presente crítico, sobre o mundo que queremos deixar às gerações vindouras.

Era de esperar que, um dia, estas perguntas saíssem dos meios de reflexão restritos em que têm estado e surgissem no espaço público. Estão aí agora para, se tivermos vontade, as discutirmos. Até porque o futuro, a que tanto apelamos, depende substancialmente do entendimento a que chegarmos, neste presente crítico, sobre o mundo que queremos deixar as gerações vindouras.

Em 1954, no rescaldo da Segunda Grande Guerra, num texto que tem sido redescoberto e citado, o enigmático Martin Heidegger, lembrava que os produtos da tecnologia deixaram de apenas “prolongar o braço humano”. O ser humano conferiu-lhes a possibilidade de, em vez de funcionarem como instrumentos, passassem a integrar o humano, a superá-lo, quiçá a produzi-lo. Em última instância, a destituí-lo de (da sua) humanidade. A proposta em que insistiu é que pensemos, que não viremos as costas à necessidade de pensar.

Ora, no caso, pensar implica revisitar valores que “dão sentido à vida do homem, no seu fundamento e no seu processo”, conduzindo sempre a “determinadas escolhas no conjunto dos dilemas que marcam a vida”, diz Cassiano Reimão (2011, p. 376). Demitindo-nos de escolher, pomo-nos em perigo e pomos o mundo em perigo. Heidegger percebeu isso e usando um belíssimo poema de Hölderlin – “Lá onde está o perigo, também cresce o que salva” –, apontou para a esperança que reside no pensar.

O ChatGPT é um potente sistema que, reconheço, intimida quem o experimenta, mas temos o extraordinário poder de o pensar em função de tais valores. Procuremos, pois, faze-lo com o empenho que é preciso.

 

Referências:

Bettelheim, B. (2018). Psicanalise dos contos de fadas. Bertrand Editora.

Heidegger, M. (1954/2002). A questão da técnica. Ensaios e conferências. Editorial Vozes.

Reimão, C. (2011). Para uma filosofia da educação. A Filosofia como mediação nas escolhas éticas em educação. Revista Portuguesa de Pedagogia, extra-série, pp. 373-383.

Nunes, L. P. (2023). Um ‘bot’ não escreveu este texto. Expresso (Revista), n.º 2622, 27 de Janeiro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.