No dia 29 de Maio de 1919 – vai agora fazer cem anos – observações realizadas na ilha do Príncipe, então uma colónia portuguesa, e no Sobral, no Nordeste do Brasil, de um eclipse solar permitiram confirmar uma previsão efetuada quatro anos antes por Albert Einstein do desvio de raios de luz emitido por estrelas por detrás do Sol. A teoria de Newton previa o valor de 0,87’’ de arco para o desvio na posição das estrelas, mas a teoria de Einstein previa o dobro, 1,74’’. Quem tinha razão? As observações penderam claramente para o lado de Einstein.
O sábio, quando lhe perguntaram o que teria pensado se o resultado tivesse sido diferente, respondeu: “Nesse caso, eu teria pena do Bom Deus. A teoria está correcta.”
O sábio, quando lhe perguntaram o que teria pensado se o resultado tivesse sido diferente, respondeu: “Nesse caso, eu teria pena do Bom Deus. A teoria está correcta.” Convém lembrar que Einstein usava a palavra Deus como metáfora da Natureza ou, melhor, da harmonia da Natureza. Para ele, “pensamentos de Deus” era sinónimo de leis da Natureza. Ter pena de Deus seria lamentar que a Natureza não seguisse uma teoria, que era não só coerente como bela, pelo que só poderia ser verdadeira.
As notícias do triunfo das ideias de Einstein só chegaram à imprensa passados uns meses, após o trabalho de casa dos cientistas. O Times de Londres de 7 de Novembro titulou: “Revolução na ciência / Nova teoria do Universo / Ideias de Newton derrubadas”, e dois dias depois o New York Times, do outro lado do Atlântico, titulava: “As luzes estão tortas no céu / Homens da ciência na expectativa quanto aos resultados do eclipse/ A teoria de Einstein triunfa / As estrelas não estão onde pareciam estar ou deviam estar, mas ninguém precisa de se preocupar.” A 15 de Novembro titulava O Século de Lisboa num tom poético: “A luz pesa.”
Nesse encontro, com Newton a observar de dentro da moldura do seu quadro, foram anunciados urbi et orbi os resultados das observações do eclipse, não tendo sequer faltado um advocatus diaboli, cujas alegações (animadversiones) não tiveram acolhimento.
A relação de Einstein com Deus já fez correr rios de tinta. Em jovem, aprendeu o essencial do judaísmo assim como o catecismo católico, mas não era uma pessoa religiosa no sentido normal do termo. Apesar da sua origem judaica, o físico de origem alemã nunca entrou numa sinagoga para rezar. Por outro lado, ele próprio se considerava um “homem profundamente religioso”, no sentido em que tinha uma enorme admiração, para não dizer reverência ou mesmo veneração, pela harmonia do mundo, que num sentido aparentado ao de Bento Espinosa, pode ser identificado com o Divino. Afirmou um dia a um interlocutor: “Tente penetrar, com os seus recursos limitados, nos segredos da Natureza, e o senhor descobrirá que, por detrás de todas as concatenações discerníveis, resta algo subtil, intangível e inexplicável.
A veneração desta força, que está além de tudo o que podemos compreender, é a minha religião. Nesta medida sou realmente religioso.
A veneração desta força, que está além de tudo o que podemos compreender, é a minha religião. Nesta medida sou realmente religioso. Quando Einstein estava, nos Estados Unidos, a ser acusado de ateísmo, o rabi de Nova Iorque perguntou-lhe, por telegrama com resposta pré-paga de 50 palavras, se ele acreditava em Deus. Respondeu o sábio, dentro dos limites fixados: “Acredito no Deus de Espinosa, que se revela na ordem harmoniosa de tudo o que existe e não num Deus que se interesse pelo destino e pelos actos dos seres humanos.”
A “religião cósmica” de Einstein não é de fácil explicação nem compreensão, exigindo grande familiaridade com a ciência, pelo que não encontrou muitos seguidores. Mas ele, consciente desse facto, achava que era melhor ter uma religião convencional do que não ter religião nenhuma. A relação com o transcendente, proporcionada por uma religião convencional, é uma marca profunda da humanidade. Escreveu numa carta a um alemão que defendia a incompatibilidade entre ciência e religião: ”Nós, seguidores de Espinosa, vemos o nosso Deus na maravilhosa ordem e submissão às leis de tudo o que existe, e também na alma disso, tal como se revela nos seres humanos e nos animais. Saber se a crença num Deus pessoal deve ser contestada é outra questão. Freud endossou essa visão no seu livro mais recente. Pessoalmente, eu nunca empreenderia tal tarefa, pois essa crença me parece preferível à falta de qualquer visão transcendental da vida. Pergunto-me se algum dia se poderá entregar à maioria da humanidade, com sucesso, um meio mais sublime de satisfazer as suas necessidades metafísicas.”
Também, relacionada com Einstein, tem feito correr muita tinta a relação entre ciência e religião. Neste contexto, gosto de lembrar que um contemporâneo de Einstein foi um padre católico, o belga George Lemaître (estudou em colégios jesuítas, mas foi ordenado padre diocesano), pioneiro do que hoje se chama “teoria do Big Bang”. Einstein, que se encontrou com Lemaître, quatro vezes ao longo da vida, duas no Velho e outras duas no Novo Continente, começou por dizer sobre o trabalho do padre belga que “as contas estavam certas, mas que a sua física era abominável”, para depois se “converter” à tese lemaîtriana de que houve um início de tudo, que hoje situamos há 14 mil milhões de anos. Tratava-se, contudo, de uma origem natural do Universo e não da Criação, tal como está representada no Génesis. O Papa Pio XII chegou a defender publicamente que a ciência tinha corroborado, com a aceitação do Big Bang, a doutrina da Criação que a doutrina católica advogava. Mas o padre Lemaître e o jesuíta inglês Daniel O’Connell, director do Observatório do Vaticano e consultor científico do Papa, dissuadiram-no de prosseguir nessa via, pois uma coisa é a ciência, sempre passível de correcções perante novas provas, e outra a religião, alicerçada em dogmas e tradições. As duas podem coabitar, como era bem evidente no caso de Lemaître, mas são dimensões distintas do ser humano.
Lemaître tinha ideias muito claras a respeito da coexistência dos magistérios da ciência e da religião: “O cientista cristão tem os mesmos meios que o seu colega não crente”.
Lemaître tinha ideias muito claras a respeito da coexistência dos magistérios da ciência e da religião: “O cientista cristão tem os mesmos meios que o seu colega não crente. Também tem a mesma liberdade de espírito, pelo menos se a ideia que tem das verdades religiosas está à altura de sua formação científica. Sabe que tudo foi feito por Deus, mas também sabe que Deus não substitui as suas criaturas. Nunca será possível reduzir o Ser Supremo a uma hipótese científica.”
Eu acho extraordinário que o Padre Lemaître tenha contrariado, com êxito, tanto Einstein como o Papa…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.