O curioso caso de Carney no Canadá

As eleições do final de abril no Canadá demonstram um efeito “Benjamin Button” conseguido por Marc Carney, o homem que rejuvenesceu a política canadiana para chegar a Primeiro-Ministro

  1. Benjamin Button e o “Capitão Canadá”

Tal como Benjamin Button, o homem que nasceu velho e envelhecia ao contrário, ficando mais novo a cada dia que passava, também Marc Carney, o recém-eleito Primeiro-Ministro do Canadá, encontrou um partido e um governo liberal envelhecido e condenado ao fracasso e, com talento, mérito, alguma sorte e circunstâncias favoráveis, conseguiu uma vitória mesmo a fechar abril, contra todas as previsões para quem acompanhou a política canadiana ao longo do último ano.

O título desta crónica é inspirado pelo conto de Francis Scott Fitzgerald, de 1921, que começou em versão escrita e já teve direito a adaptação cinematográfica, num filme de David Fincher, em 2008, com Brad Pitt, e, mais recentemente, se transformou num fabuloso musical, em cena em Londres, que lidera as apostas para os prémios Olivier de 2024. É a história de um homem que nasce velho e, enquanto passa o tempo, fica mais novo, cruzada com romance, aventuras e conquistas de alguém que triunfa quando e como menos se espera.

Ao analisar a história política recente do Canadá, parece-me fácil assistir a uma versão moderna desta fábula, com a ascensão de Marc Carney, apelidado pela imprensa local como o “Capitão Canadá” (mantendo as aliterações “fitzgeraldianas” – como o curioso Benjamin Button ou o Great Gatsby). Podemos ver um estranho percurso, até há pouco afastado da política ativa, chegando como outsider, com vida académica forte, importando os anos em que foi Governador do Banco Central do Canadá e, depois, de Inglaterra (não havendo “portas giratórias”, já tendo passado mais de uma década desde supervisionou no seu país) até que recebeu um partido liberal envelhecido, “viciado” e impopular das mãos do “jovem” Trudeau, no início de 2025, conseguindo inverter todas as tendências e previsões para quem observava o cenário político canadiano desde 2023 até ainda aos meses finais do inverno deste ano.

Esta trajetória de Marc Carney, marcada por um percurso atípico e um regresso inesperado à ribalta, ecoa a narrativa de O Estranho Caso de Benjamin Button [na tradução para português, o caso passou de “curioso” a “estranho” e perdeu-se parte da magia original]… e, assim como Button nasceu velho e foi rejuvenescendo ao longo da vida, também Carney surgiu na cena política como um “veterano estreante”: um homem maduro, moldado pelas engrenagens dos mercados globais, que foi desafiando o envelhecimento prematuro do Partido Liberal e invertendo o tempo, e as tendências, em plena corrida eleitoral. Tal como Button, Carney beneficiou de um efeito político inesperado: a eleição do Presidente Trump, com ameaças de fazer do Canadá um 51.º Estado, ou cortar com os acordos alfandegários e de mercados, deram ímpeto e força para Carney fazer campanha contra o (re)novo Presidente do país vizinho, projetando no líder do partido conservador canadiano as características que os eleitores canadianos começaram a detestar.

2. Um nascimento fora do tempo, com valore(s) de sempre

Benjamin Button nasceu com o corpo de um ancião e a mente de um recém-nascido (ou jovem, dependendo das versões), mas carrega sempre um paradoxo: a juventude de uma alma escondida sob uma pele envelhecida (e essa juventude e “curiosidade”, de certa forma, mantém-se ao longo da história). Da mesma forma, Marc Carney entrou na política partidária numa fase da vida em que muitos consideravam (talvez ele próprio) que já tinha alcançado o seu auge profissional (e talvez ultrapassado, já reformado). Antigo governador do Banco do Canadá e, depois, do Banco de Inglaterra (vencedor de um concurso internacional, e capaz de lidar com mestria com crises financeiras em ambos os lugares). A sua estreia na política ativa foi tudo menos convencional. Não foi um deputado jovem a dar os primeiros passos em debates parlamentares, mas um estadista-tecnocrata-financeiro com currículo internacional, cuja entrada no Partido Liberal em 2023 foi lida por muitos como demasiado tardia, quase anacrónica.

No entanto, tal como Button carregou sempre uma juventude futura dentro de si, Carney parece trazer a promessa de uma renovação interna. O seu discurso não apela apenas à experiência, fala de ética, sustentabilidade, coesão social, futuro; tem pergaminhos e obra escrita, como economista (mas acessível a leigos), num excelente livro chamado Value(s), em que começa por nos tentar explicar porque é que mais fácil saber o valor de uma ação da Amazon do que de uma árvore da Amazónia.

Tal como Button carregou sempre uma juventude futura dentro de si, Carney parece trazer a promessa de uma renovação interna. O seu discurso não apela apenas à experiência, fala de ética, sustentabilidade, coesão social, futuro.

E, assim, num tempo de extremismos, Carney sempre apelou à moderação, conviveu com Governos de Esquerda e Direita, no Canadá e em Inglaterra, e, nesta campanha, rejeitou populismos à Direita e fragmentações à Esquerda com uma serenidade desarmante. Para muitos, parecia velho demais para ser o rosto da mudança. E, no entanto, como Button, estava destinado a caminhar ao contrário.

3. Rejuvenescer o partido e refazer a política do futuro

O Partido Liberal do Canadá, desgastado após quase uma década de governo atrás do sorriso de Justin Trudeau (que se despediu do parlamento pondo a língua de fora para as câmaras, ilustrando bem a diferença entre infantilidade e juventude), enfrentava um envelhecimento político e simbólico. As suas mensagens já não galvanizavam, os seus quadros mais antigos pareciam presos a um tempo anterior à pandemia, ao colapso climático iminente, à ansiedade económica dos jovens. A entrada de Carney na campanha, ao contrário do esperado, não cristalizou ainda mais essa imagem — tornou-se a alavanca de uma transformação geracional e aspiracional.

O primeiro-ministro recém-eleito assumiu a liderança com um programa surpreendente, enraizado numa visão de capitalismo responsável, com políticas verdes agressivas e redistribuição fiscal estratégica. Mais do que prometer mudanças cosméticas, propôs uma refundação ideológica do liberalismo canadiano. Convidou jovens académicos, ativistas climáticos, programadores e economistas sociais para integrarem a estrutura do partido. Estimulou debates internos e propôs uma nova carta de princípios, olhando o país não como uma entidade a estabilizar, mas como uma promessa a cumprir. Os principais partidos moderados na Europa teriam muito a aprender com o jovem-velho Carney que parece estar a fazer a política do futuro.

Este rejuvenescimento parece ser mais do que retórico. A campanha de 2025 foi dominada por mensagens visualmente frescas, debates abertos e uma retórica emocionalmente contida, mas intelectualmente vibrante. A idade de Carney (59 anos à data da eleição) faz dele um dos líderes mais velhos a conquistar o poder executivo pela primeira vez no Canadá, mas a sua postura, a sua calma, e sobretudo, a sua visão voltada para o amanhã, conferem-lhe uma juventude simbólica rara. Como Button, será um velho que rejuvenesceu?

4. Inverter o tempo eleitoral e assumir uma missão

Também lembrando a personagem do conto, cuja história desafia a linearidade da vida, a campanha de Carney foi uma anomalia estatística. Quando assumiu a liderança dos liberais, as sondagens davam uma vantagem confortável ao Partido Conservador (tinham cerca 29% de vantagem em janeiro!). A erosão da popularidade liberal parecia irreversível (o Governo Trudeau era o mais impopular de sempre, com apenas 16% de eleitores a “considerarem” votar no Partido Liberal). Mas Carney operou uma extraordinária inversão — não apenas nas intenções de voto, mas na lógica discursiva da campanha.

Enquanto os seus adversários insistiram em atacar a gestão passada, Carney recusou jogar no campo da nostalgia ou da defesa. Afastou-se ele próprio do legado, apresentando um programa novo. Em vez disso, ancorou a sua mensagem em dados, comunicados com muita empatia. Misturou o rigor económico com uma linguagem quase filosófica. Citou Amartya Sem ou o Papa Francisco, falou da dignidade do trabalho, das cidades como espaços morais, da economia como uma “arquitetura do cuidado” e fez isto escudado numa história de vida em que já tinha praticado estes valores, ensinado em Harvard ou Oxford, chegando a esta campanha com uma verdadeira postura de missão e serviço público, mas virados para o futuro.

Foi nesta inversão discursiva que o tempo político começou a recuar. À medida que os conservadores insistiam no passado — nos erros, nos escândalos, nas falhas acumuladas — Carney levava os eleitores a pensar no futuro. A diferença tornou-se palpável. O debate deixou de ser sobre quem errou e passou a ser sobre quem tinha um plano credível e ético para os próximos vinte anos.

Somou-se o “Trunfo Trump” que, para continuar a aliterar, reduziu Pierre Poilievre, o líder do Partido Conservador canadiano, que tinha tido aproximações aos republicanos dos EUA no passado recente e, por isso, nunca soube ser a voz canadiana contra os discursos do presidente do país vizinho. Poilievre ficou um “mini-Trump” para muitos, e Carney permitiu isso quase ignorando o líder da oposição, focando o seu discurso em mensagens racionais contra as irregularidades (para dizer o mínimo) do presidente Trump.

Assim, em poucas semanas, o esvaziado Partido Liberal atraiu o voto dos partidos de Esquerda e do centro Direita e o “Capitão Canadá”, prestes a fazer 60 anos, venceu o oponente, com 45, e que tinha a vitória quase garantida no final de janeiro de 2025. Carney conseguiu inverter a tendência, aumentando a percentagem e o número de deputados liberais em relação à última eleição. Foi, em tudo, surpreendente.

5. Governando bancos centrais e invertendo rumos no meio de crises

No entanto, a nova fase da vida de Carney não vai ser fácil, tendo de reanimar uma economia canadiana enfraquecida e a precisar de um “rumo invertido” (como o da vida de Benjamin!).

Já enquanto Governador do Banco do Canadá (entre 2008 e 2013), foi necessário enfrentar a crise financeira que teve origem no colapso do setor imobiliário dos EUA (em 2008), espalhando-se rapidamente pelos mercados globais através de produtos financeiros complexos e alavancados. Para muitos, foi o pior colapso económico desde a Grande Depressão. Enquanto Governador do Banco Central, Carney teve reações exemplares: uma resposta rápida e preventiva (foi um dos primeiros a reduzir rapidamente as taxas de juro, antecipando o impacto da crise no Canadá); promoveu injeções de liquidez na economia (implementou medidas de liquidez em larga escala para garantir o funcionamento do sistema bancário, mesmo antes de muitos pares o fazerem); comunicou de forma clara e credível (tornou-se conhecido pela transparência e previsibilidade da política monetária, reforçando a confiança dos mercados); robusteceu a supervisão prudencial (beneficiou de um sistema bancário mais regulado que o dos EUA, mas reforçou os mecanismos de supervisão durante e após a crise).

Assim, o Canadá foi um dos países do G7 menos afetados pela crise, com uma recuperação mais rápida e sem colapsos bancários. A reputação de Carney como um “bastião da estabilidade” ganhou força internacional (e isso foi determinante para o passo seguinte).
Foi o primeiro não britânico a assumir o cargo de Governador do Banco de Inglaterra (entre 2013 e 2020), desde que o cargo foi criado em 1694 e, novamente, teve de enfrentar crises desafiantes. Em primeiro lugar, em 2016, teve de lidar com o Brexit e com o resultado do referendo que decidiu a saída do Reino Unido da UE que desencadeou choques cambiais e uma enorme incerteza económica. Depois disso, verificou-se uma grande crise cambial e a libra caiu drasticamente após o referendo, entrando a Inglaterra em risco de recessão. O clima de incerteza afundou a confiança dos investidores e houve uma ameaça de recessão técnica. Adicionalmente, a estagnação da produtividade e a desigualdade regional foram problemas estruturais que se agravaram com o Brexit.

O Governador Carney agiu imediatamente após o Brexit, em julho de 2016, o Banco de Inglaterra cortou as taxas de juro e lançou medidas de estímulo para acalmar os mercados. Foi responsável pela política “forward guidance”, utilizando a comunicação como ferramenta de política monetária, prometendo taxas baixas durante longos períodos, uma abordagem que era invulgar na época no Reino Unido. Iniciou a aplicação de planos de contingência financeiros, desenvolvendo testes de stress para o setor bancário e garantindo reservas cambiais para proteger a libra. Ainda tentou, moderadamente, e dentro do contexto do cargo, alertar para os riscos financeiros do Brexit, apesar de receber algumas críticas de políticos pró-Brexit, Carney foi alertando repetidamente para as consequências económicas da saída da EU. Como resultado, é considerado um dos principais responsáveis por evitar um colapso imediato da economia britânica após o referendo e por manter a estabilidade do sistema financeiro num período de grande polarização e incerteza política. Ganhou o respeito de aliados e críticos pela gestão apolítica da crise.

6. O paradoxo da juventude tardia e os desafios futuros

Se Benjamin Button terminou a sua vida como uma criança, esquecendo o mundo que antes conhecera, Marc Carney, inversamente, chega a esta nova fase mais adiantada da vida com uma memória e uma experiência que parecem torná-lo especialmente apto para as funções que vai exercer e ser mais do que o tecnocrata que, à primeira vista, poderíamos ver. Começou a sua vida política como um homem de idade, mas pode ir ficando mais jovem à medida que o país amadurece com ele. Poderemos ver a política canadiana recuar no tempo para voltar a começar, mais limpa, mais centrada e mais consciente?

Atualmente, o Canadá parece sofrer de uma crise de demasiada federalização, tendo muitas das suas províncias dificuldades em assegurar um regular funcionamento do mercado interno, sendo necessário fomentar e promover trocas e revitalizar a “federação” canadiana. O “Trunfo Trump” também poderá ser útil para que o Canadá ocupe uma posição privilegiada além-atlântico para parceiros europeus e também, no contexto do Pacífico, com a Ásia, aproveitando espaço deixado vago pelos EUA.

Por outro lado, o Canadá também parece ser o país mais protegido pela veloz aproximação das eleições midterms, que já são daqui a quase ano e meio, nos EUA e deverão reduzir o ímpeto de quebrar acordos comerciais entre os países vizinhos (acordos que foram dos primeiros a ter efeitos reais nos EUA em 2025).

A eleição de Carney como Primeiro-Ministro em 2025 não é apenas a história de uma vitória eleitoral improvável. É a história de um homem que desafiou a cronologia tradicional da política, que começou pelo auge e só depois desceu às trincheiras. Que rejuvenesceu um partido com ideias maduras (e gastas e viciadas), e amadureceu um país com ideias jovens. Como Benjamin Button, Marc Carney parece provar que, por vezes, para avançar, é preciso saber inverter o tempo. Que tenha a sorte e o talento que teve até agora!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.