O Carlos não é uma excepção

A escola não está a anular as desigualdades de partida e, em alguns casos, está até a permitir que aumente o fosso entre alunos – presente e futuro – desperdiçando as vidas de muitos Carlos.

Há um tempo atrás ouvi, num podcast, uma história que nunca mais me saiu da cabeça. Não só pelo caso individual, mas pela pergunta latente que me inquieta há vários anos.

O podcast conta a história de um miúdo, o Carlos, nascido num bairro degradado de Los Angeles. Consequentemente frequentava uma escola agreste, com um quotidiano marcado por guerras de gangues, detetores de metais nos portões de entrada e uma espécie de “solitárias” para manter os alunos arruaceiros isolados até chegar a polícia.

Não exatamente o ambiente em que se espera que floresça o sucesso escolar, certo?

Mas por causa desta premissa que, de alguma forma e em alguma medida, aceitamos como verdadeira, não procuramos e por isso não desenvolvemos e assim condenamos miúdos como o Carlos.

No podcast, com uma voz calma e um pensamento organizado, o Carlos conta-nos que sempre achou a escola fácil. Tinha boas notas, especialmente a matemática porque gostava do pensamento lógico. Conta-nos como, no 5º ano, a sua vida mudou radicalmente porque, identificado pelo Programa YES, mudou para uma escola numa zona afluente e o seu mentor YES, Eric Eisner, acompanhou-o desde então até à sua entrada na Universidade. Claro está, o primeiro da sua família a chegar tão longe.

Todo este percurso foi complexo, porque a adaptação às novas escolas não foi simples, porque as deslocações entre o seu bairro e estas escolas lhe levavam horas de transportes, porque a mãe do Carlos foi presa e ele, assim como a sua irmã, andaram por várias famílias de acolhimento, enfim, todos os obstáculos que se possam imaginar. Menos um: o Carlos tinha capacidade e vontade, e sobretudo teve quem o ajudasse, promovesse e não desistisse dele.

Será o Carlos um caso excepcional? Quantos Carlos haverá nas escolas portuguesas? E quantos terão já ficado para trás? E quantos Eric Eisner há a trabalhar com as nossas escolas e de quantos precisaríamos para que todo e cada MAGIS se realizasse?

Partindo do “Relatório Nacional Pisa 2018”, da OCDE, podemos pensar na realidade portuguesa a partir de factos:

  • Só 57% dos alunos com 15 anos estão no ano de escolaridade esperado, os restantes alunos com essa idade frequentam anos abaixo, até ao 4º ano, por retenções sucessivas;
  • A diferença de desempenho no PISA entre alunos provenientes de contextos favorecidos e desfavorecidos é de 95 pontos – a média portuguesa é de 492 pontos;
  • A probabilidade de um aluno de entre os 25% mais desfavorecidos obter uma pontuação abaixo do nível 2 de proficiência é aproximadamente três vezes maior do que a de um aluno com estatuto socioeconómico superior obter essa pontuação;
  • Dos alunos provenientes de contextos desfavorecidos, independentemente do seu score no PISA, 40% não se permite aspirar a frequentar o ensino superior – o que acontece apenas com 7% dos alunos de contextos favorecidos.

E perante estes factos, devemos fazer pelo menos uma pergunta: acreditamos que o talento se concentra apenas e naturalmente nas escolas privadas, nos bons liceus públicos ou só nos filhos das famílias mais estruturadas?

Ou há um assunto grave, persistente, complexo, não resolvido e que, por isso mesmo, tem que ser relembrado continuamente: a escola não está a anular as desigualdades de partida e, em alguns casos, está até a permitir que aumente o fosso entre alunos – presente e futuro – desperdiçando as vidas de muitos Carlos.

Há pouco tempo, numa boa conversa sobre estas inquietações, falavam-me da Finlândia. Um país periférico, com poucos habitantes e sem recursos naturais valiosos, como Portugal. E, no entanto, um país com níveis de formação e sucesso educativo elevados, rico no sentido coletivo. Explicavam-me que há muito tempo que os finlandeses perceberam que o seu mais relevante recurso natural são os seus habitantes, e que esse é escasso, pelo que ninguém pode ficar para trás e nenhum talento se pode perder.

Uma visão simples e pragmática que pode mudar tudo. Mudar-nos a todos.

Fotografia de: Jeswin Thomas – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.