Tenho uma admiração particular por quem é capaz de manter um olhar atento no meio do rodopio dos dias, em particular por quem escreve sobre os lugares-comuns como se estivesse atrás de uma câmara (e às vezes está), a captar uma qualquer singularidade banal que nos dá, depois, vontade de habitar. Provavelmente, a admiração de que falo vem da perceção de que me é difícil fazer o mesmo, ter esse olhar renovado de descobridor do quotidiano. Quantas vezes chego ao final de uma jornada sem chispa de encanto!
Há, porém, quem seja capaz de dar essa volta ao texto com mestria, acreditando eu que o fará também com o ritmo próprio do treino. A criatividade não é só fruto da musa que visita, mas também do músculo exercitado pela disciplina.
Ivone Mendes da Silva oferece-nos isso, precisamente, em 330 encontros com a banalidade dos dias, num livro encantador chamado Dano e Virtude, um “diário convulso” (como a própria o descreve) que nos leva pela mão às coisas singelas que podem passar despercebidas a quem vive a correr como na roda do hamster. O que a autora faz não é esquecer o cansaço, o trabalho, o barulho do prédio onde vive, os dias de chuva, o ir às compras, à farmácia, à lavandaria ou às finanças; é antes, em todas estas coisas, procurar e descobrir algo que seja o rastilho da imaginação, das palavras que persistem em achar novidade: “Sento-me e espero que o texto me estenda um fio que eu possa segurar e seguir”. O segredo está, portanto, no olhar (não está sempre?) e no que podemos fazer com aquilo que os olhos captam, mas nem sempre veem. Eu, que no final de cada dia me vejo obrigada a recolher loiça de todas as mesas da casa, jamais me lembraria de o reparar para além da irritação de ter de o fazer, mas Ivone escreve com humor: “Se eu morresse hoje de morte suspeita e viessem reconstruir o trajeto do meu último dia, bastaria seguir as chávenas que esqueço pela casa. As de chá e as de café (…) assim, descobrir-me era tão-só saber por que chávena começar. (agora vou arrumá-las)”.
Outra mestra do olhar é Patti Smith que, tanto em livro (A book of days, ainda não publicado em Portugal) como na sua página de instagram (de onde saiu o livro), recolhe polaroids de coisas banais e junta-lhes as palavras que ocorrem em cada circunstância. Numa imagem pode ler-se, por exemplo: “Esta é a chávena do meu pai, às vezes ele chamava-nos para a cozinha, servia um café e lia em voz alta (…)” ou noutra (em que se adivinha a capa de um livro de Fernando Pessoa) lê-se: “Um cantinho de coisas preciosas. A chávena do meu pai, a minha cruz etíope, o canivete de Sam, o anel do Libertino”.
O que eu gosto em tudo isto é o ato de notar, o olhar intencional que revela alguma coisa que traz outra, e mais outra, e outra ainda, porque os pequenos detalhes podem levar-nos a longos caminhos, memórias boas, encantos pequenos.
O que eu gosto em tudo isto é o ato de notar, o olhar intencional que revela alguma coisa que traz outra, e mais outra, e outra ainda, porque os pequenos detalhes podem levar-nos a longos caminhos, memórias boas, encantos pequenos.
Já no cinema, lembro-me do filme de Wim Wenders, Dias perfeitos, que revi por estes dias e que tão maravilhosamente nos dá a conhecer a vida efabulada de Hirayama, um homem cuja profissão é limpar casas de banho públicas na cidade de Tóquio e que procura, dentro de uma vida marcadamente rotineira, encontrar beleza nas coisas singelas e negligenciadas. Num confronto flagrante com a cidade que o rodeia, na qual filas de automóveis se movem pelos viadutos como carreiros de formigas e toda a gente se zanga, irrita ou corre atrás de alguma coisa, o nosso protagonista acorda num minúsculo apartamento onde a parca mobília se resume a um colchão, uma estante de livros, um conjunto de cassetes (sim, cassetes!), um candeeiro e um lugar para fazer crescer plantas que ele rega metodicamente todas as manhãs. Sempre que sai de casa, olha para o céu e sorri e, ao longo do dia, repara nos jogos de sombra e luz nas paredes ou na vegetação dos parques onde come qualquer coisa a meio da manhã e retrata estes instantes com uma máquina analógica cujos rolos revela, depois, numa loja minúscula que já nem devia existir (uma alusão ao pensamento japonês do “komorebi” que significa, literalmente, a luz filtrada pelas folhas das árvores e que se associa, num sentido mais lato, às pausas para apreciar a beleza do que é simples).
Num tempo em que tudo é instantâneo e rápido, Hirayama arranca a felicidade ao que é lento e invisível, ao que cria expectativa, ao que se procura intencionalmente. Vamos percebendo ao longo do filme que este homem tem um passado que o marcou com as dores normais de qualquer existência e que não está imune ao sofrimento, que se comove, que é capaz de chorar e sorrir (ao mesmo tempo), enquanto conduz a sua carrinha azul a caminho de casa, mas sabe também que cada dia é uma possibilidade, uma esperança, uma tela ainda em branco.
Creio que este viver de que falo é uma arte que nos arranca ao piloto automático dos dias; é como se Ivone Mendes da Silva, Patti Smith, Wim Wenders e tantos outros conseguissem encontrar um portal que lhes permite descobrir uma esquina do quotidiano que ainda não tinham contornado, vendo nela um caminho não percorrido, uma razão, um sentido, uma pausa, um respirar profundo. Esta capacidade de descobrir novidade e beleza no cenário rotativo dos dias faz disparar o meu espanto e, não raro, um sorriso de ternura e consolo.
Há uma cena de Dias Perfeitos em que Hirayama e a sobrinha atravessam uma ponte de bicicleta e ambos brincam com a repetição cantada de uma frase simples: ”a próxima vez é quando for a próxima vez, o agora é agora”, e eu sei que devia repetir isto como um mantra ou uma oração a juntar àquela outra exclamação de Jesus: «até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais. Valeis mais do que todos os passarinhos» e depois, viver confiante na tal expectativa do que cada dia pode ainda revelar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.