Notas sobre “pântanos políticos”

Falamos, hoje, de um pântano com contornos criminais, mais aproximável à Operação Marquês do que a mais um impasse político.

“Este é o terceiro pântano político no qual o Partido Socialista faz mergulhar Portugal nos últimos 22 anos”, dizia Luís Montenegro, reagindo à demissão de António Costa e à dissolução da Assembleia da República anunciada por Marcelo Rebelo de Sousa.

Com estas notas procurarei reler a sucessão de acontecimentos e reações que têm dominado o espaço público na última semana, numa altura em que ainda falta apurar muita informação sobre os pormenores da acusação do Ministério Público, que já conta com arguidos e detidos. Seja como for, aquilo que vivemos parece-me superar uma mera conjuntura política adversa: no ano em que celebramos o cinquentenário do 25 de Abril, estamos perante uma grave crise sistémica que ameaça o regime democrático, tal como o conhecemos.

1. O que envolve a demissão do primeiro-ministro não é meramente a referência ao seu nome num parágrafo “obscuro” e “vago” de uma nota de imprensa da Procuradoria-Geral da República. É a hipótese plausível da sua interferência em atividades ilegais do seu gabinete e Governos. Não é possível separar a liderança do Executivo das responsabilidades do círculo íntimo de António Costa. Vitor Escária e Lacerda Machado dependiam politicamente da confiança do primeiro-ministro, bem como os ministros por ele nomeados, e a sua eventual responsabilização neste processo visa diretamente aquele a quem respondem. A apreensão de 75.800€ escondidos no escritório do chefe de gabinete do primeiro-ministro, em pleno palácio de S. Bento (!), sugere a gravidade dos factos e a sua perigosa proximidade ao chefe do Governo.

2. Ao invés do que parece sugerir Montenegro, este “pântano” difere em grande medida daqueles ocorridos nos governos de Guterres e Sócrates, motivados, respetivamente, pela instabilidade política e pela iminente bancarrota. Falamos, hoje, de um pântano com contornos criminais, mais aproximável à Operação Marquês do que a mais um impasse político. É inédito na Democracia portuguesa termos um primeiro-ministro apontado como suspeito de intervir com a sua autoridade para “desbloquear procedimentos”, estando no exercício das suas funções. A magnitude do sucedido alarga-se quando essa intervenção é associada pela Justiça a eventuais crimes de “prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência” cometidas também por elementos nucleares da sua equipa. A herança de Sócrates paira sobre Costa, não só por aqueles que escolheu para o seu gabinete e governos, mas pelo modo de proceder questionável no comando dos destinos do país.

A herança de Sócrates paira sobre Costa, não só por aqueles que escolheu para o seu gabinete e governos, mas pelo modo de proceder questionável no comando dos destinos do país.

3. Seria insuficiente interpretar a convocação de eleições como uma consequência natural de um imprevisto político, como aquele que resultou do chumbo do Orçamento do Estado para 2022. Estamos perante suspeitas graves de promiscuidade entre negócios estratégicos e altos quadros do Governo (e da confiança) de António Costa. Mais do que ocupar-se com palavras meigas de agradecimento pelos anos de serviço público do primeiro-ministro demissionário, Marcelo poderia ter sido mais explícito e contundente ao convocar eleições, já que enfrentamos um sério problema de reputação institucional, muito além de um mero problema de governabilidade. Como disse Rui Tavares, o que vivemos “não é apenas uma crise política” – é “uma crise de regime”. Neste sentido, compreende-se também a opinião de João Miguel Tavares, quando sugeria que não fossem já convocadas eleições. Apesar de tal opção ser impraticável por posições já assumidas pelo Presidente da República acerca da maioria absoluta, o raciocínio apresentado faz sentido. Sob o título “O país devia parar e pensar”, Tavares sugere que “nenhum português deve ser obrigado a votar em legislativas sem ter uma convicção profunda acerca da solidez destas novas suspeitas, ou, pelo menos, sem uma forte clarificação acerca do papel de António Costa no processo”. O autor conclui de forma inequívoca: “Portugal precisa de tempo para perceber se o PS ainda é um partido minimamente confiável ou se está definitivamente transformado num antro de corrupção.”

Mais do que ocupar-se com palavras meigas de agradecimento pelos anos de serviço público do primeiro-ministro demissionário, Marcelo poderia ter sido mais explícito e contundente ao convocar eleições, já que enfrentamos um sério problema de reputação institucional, muito além de um mero problema de governabilidade.

4. A contagem de espingardas que já começou no Partido Socialista corre o risco de ser uma reação automática à demissão de Costa e à decisão de Marcelo, como se de uma mera sucessão se tratasse. Seria importante recuperar as palavras de Pedro Delgado Alves, que, em 2021, defendeu que o PS deveria fazer uma reflexão e uma autocrítica sobre a ação de José Sócrates. A reflexão que o país se encontra a fazer, desde 7 de novembro e até 10 de março, corre o risco de ser curta. Mais ainda, de pouco serviria esta reflexão se o Partido Socialista, partido fundacional da nossa democracia, prescindisse de a fazer no perspetivar do pós-Costa. Será que as candidaturas de José Luís Carneiro e Pedro Nuno Santos representam uma fuga para a frente, de quem quer manter o poder socialista bem como o estilo de governação que nos conduziu a este impasse? Convém não esquecer que, à partida, qualquer candidato que, nesta corrida, queira assumir uma rutura com o passado recente tem do seu lado o ónus da prova. De facto, falamos de dois ministros do atual Governo, o mesmo cujo líder se viu forçado a demitir-se, por suspeitas de corrupção no interior das suas fileiras. Não teria o PS outras caras para apresentar, nesta hora de prova?

5. Em pleno “pântano”, ocorre-me atribuir duas expressões da sabedoria popular portuguesa à postura caricatural dos protagonistas do momento: António Costa e João Galamba. Com o já badalado refrão “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”, Costa tratou de virar o bico ao prego numa segunda mensagem ao país, na noite de sábado. Defendendo o modo de proceder do Governo junto dos investidores em Sines, argumentou que o movia a “transição energética”, a “transparência que supera a burocracia”, e o “desenvolvimento regional”, ao invés de qualquer interesse particular. De destacar o tom doutoral de quem deixa, orgulhosamente, o seu posto, depois de 8 anos a chefiar a Administração Pública, numa “última lição” propagandística que acabou por contrariar o seu lema, ao confundir em toda a linha os âmbitos da Política e da Justiça. Tudo isto sem deixar de se vitimizar subtilmente face à Justiça, vil pedra de tropeço, à qual é devido respeitinho, mas que não deve atemorizar os bem-intencionados vociferantes em coro: “deixem-nos trabalhar!”.

6. Já Galamba tratou de assinalar o seu regresso ao Parlamento, enquanto ministro-arguido, dotado de uma normalidade no mínimo provocadora. Sustendo aquele inocente “não, não tenciono [demitir-me]”, estavam anos e anos de “casos e casinhos”, num pragmatismo que se tornou apanágio dos governos de Costa de “passar entre os pingos da chuva”. Pedindo de empréstimo a expressão a Henrique Monteiro, ficam aqui registados alguns dos episódios que geraram muitas demissões no Governo, mas sobretudo um ambiente amoral de certa impunidade: o roubo de Tancos, as trapalhadas do Ministério das Infraestruturas e do SIS, as reviravoltas e indemnizações na TAP, o pára-arranca do novo aeroporto, o pavilhão que não existia em Viana do Castelo, os contratos obscuros envolvendo os Vistos Gold, a contratação por ajuste direto de um ex-jornalista para assessor de um ministro… Em política não vale tudo e a mera invocação da ética da responsabilidade não justifica a negação das próprias convicções, à medida que as circunstâncias vão mudando (cf. A Ciência e a Política como Ofício e Vocação, de Max Weber). A moralidade – como válvula de escape – deve ter uma palavra a dizer.

Em política não vale tudo e a mera invocação da ética da responsabilidade não justifica a negação das próprias convicções, à medida que as circunstâncias vão mudando (cf. A Ciência e a Política como Ofício e Vocação, de Max Weber). A moralidade – como válvula de escape – deve ter uma palavra a dizer.

7. Na comemoração dos dois anos à frente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas profetizou perentoriamente: “Acredito que aquilo que fizemos nestes dois anos vai ser o que vamos fazer com Luís Montenegro. Será o próximo primeiro-ministro de Portugal”. O que é facto é que, a acreditar pelas sondagens, a oposição de Montenegro não tem galvanizado a opinião pública, sendo justamente Carlos Moedas o nome sugerido para o PSD responder à crise política. Seja como for, parece que Moedas e Montenegro estão de mãos dadas e com os olhos postos em 10 março de 2024. A imagem desta eventual união dentro do PSD contrasta com o muito trabalho que Montenegro terá pela frente se quiser, em menos de 4 meses, montar uma alternativa de Governo credível e sólida. Além de ter de consolidar a sua imagem, discurso e programa junto do seu eleitorado, precisará de aprender a lição de Costa e apresentar uma equipa imaculada do ponto de vista do historial relativamente à Justiça. Além disto, terá de montar uma estratégia coerente para fazer face à garantida escalada do Chega, à boleia do seu discurso anticorrupção e antirregime, mais atual do que nunca. Se, por um lado lhe será exigido traçar uma fronteira face a Ventura, por outro lado não parece estar em condições e com margem suficiente para ignorar o peso do Chega em futuras geometrias parlamentares. A IL, da sua parte, já garantiu que não está disponível para coligações pré-eleitorais, mas parece um parceiro natural para formar governo. O CDS já assumiu a determinação de voltar ao Parlamento para “somar numa alternativa de direita”.

Fica a interrogação: será possível, em quatro meses, responder a uma crise de regime, quando o mais provável é obtermos uma solução parlamentar mais precária do que aquela que os eventos desta semana trataram de derrubar?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.