Nós e o jornalismo. Quem tudo quer, tudo perde

Creio que é neste beco sem saída que me encontro, acompanhado por boa parte da sociedade. Queixo-me sistematicamente da falta de qualidade do jornalismo, mas fecho os olhos na hora de promover a sustentabilidade financeira dos jornais.

O mundo do jornalismo é um mundo estranho que parece funcionar ao contrário. Durante estas últimas semanas, muitos jornais bateram os seus recordes de sempre de “tráfego digital”, isto é, obtiveram um número nunca antes visto de visitas aos seus sites. Ao mesmo tempo, a direção do Diário de Notícias demitiu-se por causa dos cortes que sofreu, muitos outros órgãos de comunicação social correm o risco de acabar, e foi lançada uma campanha conjunta de anti-pirataria por mais de 20 jornais. Tudo isto acontece enquanto que os jornalistas continuam nas ruas e nas redações, a trabalhar para manter a população informada.

Este cenário distópico, no qual “sucesso de negócio” e “ameaça de falência” parecem andar de mãos dadas, despertou-me bastante curiosidade para a situação do jornalismo em Portugal. Como sei pouco sobre jornalismo, comecei por pensar sobre aquilo que penso. Partilho aqui o meu percurso de raciocínio.

  1. Considero o jornalismo como sendo absolutamente essencial e indispensável numa sociedade que se queira verdadeiramente democrática. Talvez nunca me tivesse apercebido tão claramente desta dependência como durante estes tempos de pandemia de redes sociais e coronavírus. Mas julgo que, quanto maior a quantidade de informação a que temos acesso, maior a nossa necessidade da mediação, autoridade e filtragem do jornalismo. Este raciocínio pode parecer contra-intuitivo, pois acesso direto a mais informação poderia significar menos necessidade de jornalistas, mas acho essa ideia perigosa.
  2. Nunca me decidi a pagar por conteúdos jornalísticos online. Talvez por uma questão de hábito, de convicção, de preço ou outra coisa qualquer, nunca me pareceu fazer sentido subscrever conteúdos pagos. Apesar de todos os dias frequentar um ou dois sites de jornais online, sempre resisti a aderir, e o que é certo é que recorri muitas vezes a formas criativas de contornar as paywalls. Por outras palavras, pirateei e acedi aos conteúdos ilegalmente.
  3. Este ponto tem que ver com os dois anteriores: é impossível conjugá-los. Tanto a nível pessoal como a nível político. Se estou disposto a violar a lei que protege os jornalistas, porque não estou disponível para estabelecer uma relação comercial justa com os jornalistas, então dificilmente alguém acreditará que valorizo realmente o seu trabalho, a começar por mim próprio. Igualmente, se enquanto sociedade resistimos a valorizar, tanto financeiramente como de outras formas imateriais, o trabalho dos jornalistas, então será inevitável a sua deterioração.

Depende de nós, enquanto sociedade, repudiar o modelo de negócio que a internet impôs sobre a comunicação social, e abandonar a postura de “credor incondicional” à qual nos habituámos. Porque não existe um direito constitucional a ser perfeita-e-gratuitamente-informado-ao-segundo, apesar de muitas vezes nos comportarmos como se existisse.

Creio que é neste beco sem saída que me encontro, acompanhado por boa parte da sociedade. Queixo-me sistematicamente da falta de qualidade do jornalismo, mas fecho os olhos quando é hora de promover a sustentabilidade financeira dos jornais. Não só fecho os olhos, como estou disponível para violar a lei, seja a reencaminhar pdfs no Whatsapp ou a piratear diretamente os sites. Exijo o direito a ser bem informado, ao segundo e em direto, mas repudio qualquer dever recíproco que me atinja. Denuncio as práticas de clickbait e fake news, mas ignoro que depende de mim próprio aceder a jornais e conteúdos de confiança, e que depende de nós fortalecermos os meios de comunicação social que apoiamos.

Porque depende de nós, enquanto sociedade, repudiar o modelo de negócio que a internet impôs sobre a comunicação social, e abandonar a postura de “credor incondicional” à qual nos habituámos. Porque não existe um direito constitucional a ser perfeita-e-gratuitamente-informado-ao-segundo, apesar de muitas vezes nos comportarmos como se existisse.

Obviamente que muitos dos desafios que o jornalismo enfrenta não dependem dos seus leitores e de maior financiamento. Mas, especialmente para quem acredita que o jornalismo, é hoje mais necessário do que nunca, não nos desenganemos: acostumámo-nos a uma relação de sentido único com o jornalismo, da qual precisamos de sair. Porque, no final, quem sai a perder somos nós e a nossa democracia.

Uma só assinatura não tem impacto económico no mercado. Mas a nível pessoal e moral, pode ser um pequeno grande passo de responsabilidade cívica. Pensei eu.

PS: Se acha que as assinaturas online são caras, como eu sempre me convenci, há que fazer as contas: Comprar o jornal em papel durante um ano, aos dias de semana, a 1,20€ por dia,  representa uma despesa anual de 312€. Por este valor, seria hoje possível assinar online, durante um ano, o Observador, o Expresso, o Público e o Diário de Notícias. E no final, ainda nos sobrariam 50€. Dá que pensar?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.