Nomadland: O que é habitar? O que é encarnar?

Encarnar é um movimento, um processo e uma dança, nem sempre planeada ou programada, por lugares fora do centro, não atrativos ou chamativos, que vão desde uma zona de distribuição da Amazon até estacionamentos gelados cheios de lixo.

“Abril é o mais cruel dos meses”. A frase é de T. S. Eliot no início do colossal poema The Waste Land (A Terra Devastada) e estabelece uma antítese com um sentimento geral que vê neste período do ano, uma época de aurora, de primavera e de manhã: “um tempo branco, repetidamente lavado nas nossas mãos” (Daniel Faria). Contudo, Abril carrega também consigo a obrigação de florir, de sair do refúgio, de destruir um certo conforto que túmulos, esconderijos e lugares vários promovem. É daí que advém, talvez, a sua anunciada crueldade, mas embora o filme Nomadland nos coloque, à partida, no tempo frio de Inverno, não é menor a dureza que nele nos é apresentada.

De facto, ao longo de cenários austeros, rudes e pouco acolheres, somos conduzidos por Fern, recém-viúva e recém-desempregada, transformada, dada a sua fragilidade social, em trabalhadora nómada de ofícios precários, através das mesmas “imagens quebradas” que o poeta naturalizado britânico propõe. Mas se The Waste Land foi escrito no rescaldo de uma Europa fragmentada e em ruínas pela primeira grande guerra, Nomadland apresenta, igualmente, a contraluz de uma América que, afirmando-se renovadamente triunfante, é povoada por caravanas de trabalhadores ambulantes, desesperados por trabalho, sem grandes exigências laborais e pertencentes a uma faixa etária envelhecida, num exercício semelhante ao que John Steinbeck havia concretizado no século passado com o livro The Grapes of Wrath (As vinhas da Ira). Em certo sentido, trata-se de um modo de expor a ironia e o reverso da história, porque a proclamada verdadeira América – lugar do progresso e do sonho – vive dependente da América ancestral dos novos pioneiros, presentes, desde logo, no nome da carrinha que serve de casa a Fern, a Vanguard.

No entanto, desengane-se quem pensa que verá um mero filme panfleto. Nomadland tem muito mais para oferecer.

No entanto, desengane-se quem pensa que verá um mero filme panfleto. Nomadland tem muito mais para oferecer. Desde logo, porque a protagonista retoma a condição de Dante no início da Divina Comédia – “No meio do caminho em nossa vida / eu me encontrei por uma selva escura / porque a direita via era perdida” – e, a este nível, é interessante que a viagem do poeta italiano comece, precisamente, numa data próxima ao equinócio da Primavera. O facto é que num balanço entre amizade e solidão, na tensão entre a estabilidade da qual se foi arrancado e a atração e os riscos da estrada, Nomadland, fazendo ecoar The Waste Land, The Grapes of Wrath e a Divina Comédia, relança uma pergunta fundamental: O que é uma casa? O que é ter um lugar? O que é habitar? Ou então, em sentido teológico, o que é encarnar?

Assim sendo, percebemos que encarnar é um movimento, um processo e uma dança, nem sempre planeada ou programada, por lugares fora do centro, não atrativos ou chamativos, que vão desde uma zona de distribuição da Amazon até estacionamentos gelados cheios de lixo; que encarnar é um confrontar-se e um permanecer demorado junto dos dramas que Fren, à semelhança de uma jornalista improvisada, recolhe ou, simplesmente, recorda; que encarnar é um conhecimento discreto, tal como mostra a protagonista que, detendo invulgares conhecimentos de literatura – chegando mesmo a citar de cor o 18.º soneto de Shakespeare – diz sempre menos do que aquilo que sabe; que encarnar, ou estabelecer morada, é não devorar um lugar, do mesmo modo que Nomadland não domestica Fren, nem a prende a um final previsível.

De facto, Dante na Comédia será, efetivamente, apresentando à “luz eterna que só tens sede em ti”, mas a nómada Fren, num gesto que é tanto de reconhecimento como de protesto face à impermanência humana, sempre se há-de assumir como aquela que, não sendo “sem-abrigo” (homeless), não tem um lugar para onde voltar (houseless), talvez porque esse lugar é a incerteza das peregrinações, ressoando, desde logo, os versos de João da Cruz:  “Buscando meus amores, / irei por estes montes e ribeiras; / Não colherei as flores, / nem temerei as feras, / E passarei os fortes e fronteiras». E se em The Waste Land, a fertilidade da terra dependem de um cavaleiro, com a missão de “libertar as águas”, em Nomadland a pedrada no charco será as feridas que Fern carrega consigo, numa estrada onde não há despedidas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.