Noites escuras

Mas quando os dias são escuros, quantos de nós não olhamos para o céu, recordados da última Primavera, quando os dias não se entendem, quantos de nós não procuramos o sepulcro vazio da manhã de Páscoa?!

Não há dia sem noite, brisa sem vento, sombra sem sol. Certezas que a vida nos dá, conscientes de que tudo acontece, numa sequência de dias e noites, de tempestades e acalmias, de confortos e desconfortos, de consolos e desolações. Mas quando a consciência da presença de Deus se mete por nós adentro, quando nos encantamos com o mistério do Natal e nos chocamos com a dor da morte na Cruz, tudo ganha (ou perde) outra verdade.

Perante o mundo em que vivemos, em que cada dia que passa nos revela palavras, acontecimentos e decisões que não param de nos surpreender, senti que a noite escura não é propriedade dos santos, dos homens e mulheres, cujas vidas admiramos na distância dos altares, ou nas leituras que nos deixam. Não consegui encontrar outra forma de identificar o que penso e sinto sobre a desonestidade, a arrogância, a impotência a que assistimos perante o que se passa entre as grandes potências do século XXI. Assisto envergonhada às declarações dos homens que morrem e matam na distância de diretos na televisão. Assisto magoada às imagens das crianças que correm para panelas que lhes possam eventualmente matar a fome. Assisto aos circos que se montam perante tudo o que possa captar a atenção de quem passa.

Sentada no conforto da minha casa, no consolo de me saber amada pelos meus, na paz do meu país, vai ganhando espaço esta certeza de que se abate sobre o mundo uma noite escura. Aquele tempo em que o nosso entendimento não abre caminhos, em que o nosso coração não se rasga nem chora.

Sentada no conforto da minha casa, no consolo de me saber amada pelos meus, na paz do meu país, vai ganhando espaço esta certeza de que se abate sobre o mundo uma noite escura.

Estava assim, quando sem saber como nem porquê, abri um livro ao acaso e vi um postal, daqueles que se compravam quando se viajava e queríamos trazer uma recordação. Trazia a imagem de um Cristo da Paz, de autor desconhecido e datada do séc. XVI e no verso, escrito que era um quadro de Santa Teresa d’Ávila. Este Cristo da Paz está coroado de espinhos e mostra as mãos chagadas. Tem pingos de sangue na testa. O olhar é intensamente triste e o pincel do artista, marcou profundas olheiras numa cara magra, uma boca fechada. Olhei para Ele e Ele para mim. Como se me dissesse, sim, há noites escuras. Sim há ódio e maldade, dor, sofrimento e solidão. Sim, não há tempo estabelecido para a dor, o ódio e a maldade. Nem tempo, nem lugar.

Mas não fiques presa desse tempo. Morri pela vossa liberdade de filhos de Deus. Morri por cada um, por cada uma. Morri pelos idosos que fogem de suas casas, pelas crianças que ficam sem pai, nem mãe. Pelos soldados que resistem em trincheiras e pelos que desertam pelo medo e pela fome. Morri pelos pais que recebem os corpos mortos dos filhos, pelas viúvas destas guerras, pelos jovens sem sonhos. Morri pelos homens bons e pelos homens maus. Pelos que são amados e por todos aqueles de quem ninguém gosta.

Preciso que percebas a minha Páscoa, agora, neste tempo que estamos a viver. Com a guerra a acontecer, com a ganância e o ódio a crescer, com a tristeza de ver partir aqueles que se amam. A minha Páscoa, desde que entrei em Jerusalém, até à manhã do terceiro dia.

Olhei para Ele e Ele para mim. Que noite escura esta. Que intensidade de palavras, de sentimentos e emoções. Como é possível que uma imagem da agonia de Cristo, se tenha chamado “Cristo da Paz”? Que Paz será esta, assim anunciada?!

Mas quando os dias são escuros, quantos de nós não olhamos para o céu, recordados da última Primavera; quando os dias não se entendem, quantos de nós, não abrimos janelas atentos ao barulho dos pardais; quando os dias são tristes, porque nos custam as ausências e os vazios, quantos de nós não procuramos o sepulcro vazio da manhã de Páscoa?!

Sem a Ressurreição de Jesus, seríamos os mais infelizes, os mais miseráveis e abandonados. Agarro-me a esta certeza, ainda sem saber como é possível. O mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo cai sobre mim com a mesma intensidade com que me olha o Cristo que acompanhava Santa Teresa.

Somos gente feita para descobrir até onde nos pode levar o Amor. E as noites escuras encontram sempre o amanhecer. Assim nos ajude este Cristo da Paz, pintado por alguém que entendeu o mistério da presença de Deus no mundo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.