Natal: Jesus sem títulos

Neste dia, é impossível este texto não ser sobre o Natal, e sobre a figura a que nele se faz referência. Jesus despido de todos os títulos atribuídos pela fé é referência indiscutível para as grandes questões dos nossos dias.

Este ano, ao aproximar-se o Natal, dei comigo a pensar que o facto de parte da Humanidade, na qual me incluo, celebrar neste dia o nascimento do Filho de Deus torna irrelevante e suprime para o resto da maior parte do mundo, a figura de Jesus, o seu papel irrefutável na História e as causas pelas quais deu a vida até à morte, executado pelo poder político e apoiado por falsos testemunhos de religiosos.

Fora do âmbito da fé, raramente se faz referência ao que Jesus disse e fez com a mesma liberdade com que, de forma generalizada, são referidos Nelson Mandela, Martin L. King, Mahatma Gandhi, Eleanor Roosevelt, Katherine W. Sheppard ou Rosa L. McCauley, entre tantos, tantos outros.

Sou crente cristã e não me entendo de outra forma. No entanto, hoje, véspera de Natal, propus-me o exercício de dissociar o nome de Jesus do título de Salvador. Jesus despido de todos os títulos atribuídos pela fé é referência indiscutível para as grandes questões dos nossos dias.

Fora do âmbito da fé, raramente se faz referência ao que Jesus disse e fez com a mesma liberdade com que, de forma generalizada, são referidos Nelson Mandela, Martin L. King, Mahatma Gandhi, Eleanor Roosevelt, Katherine W. Sheppard ou Rosa L. McCauley, entre tantos, tantos outros.

Nesta época não se aprende da História e regressam de novo perigosos populismos. Jesus  mergulhou dentro das multidões dos simples e, ao contrário da generalidade dos atuais políticos,  ouviu os seus anseios e sofrimentos. Percebeu que estavam sobrecarregadas, como ovelhas sem pastor e, por elas, confrontou inequivocamente os poderes estabelecidos, lutando por restabelecer a verdadeira justiça.

Esta época é marcada pela globalização da indiferença do que acontece à nossa volta e do desgraçado destino de tantos. Jesus não teve limites na compaixão. Enquanto nos interrogamos se devemos levantar muros e reforçar fronteiras ou criar pontes e acolher, Jesus recuperou o samaritano – inimigo do judeu – em detrimento do puro sacerdote na alegoria que contou do Bom Samaritano, questionando quem o ouvia sobre a hipocrisia da nossa moral, invertendo a simples pergunta de quem é o nosso próximo para de quem é que fui próximo.

Nesta época o exercício do poder tem rasgos de despotismo, de nepotismo e de círculo/circuito fechado em benefício de uma elite. Jesus praticou e, pela prática, convocou a uma liderança de serviço e de abnegação pelo bem de cada um e centrada no Bem Comum. Porque exerceu o poder assim, e resultou, a sua voz tem autoridade quando afirmou que só assim se pode experimentar a plena realização no exercício do poder. De contrário, estará condenado e será sempre um abuso do mesmo.

Nesta época o exercício do poder tem rasgos de despotismo, de nepotismo e de círculo/circuito fechado em benefício de uma elite. Jesus praticou e, pela prática, convocou a uma liderança de serviço e de abnegação pelo bem de cada um e centrada no Bem Comum.

Nesta época questiona-se de novo o papel da mulher na sociedade e na Igreja, a forma como ela é considerada e tratada. Jesus não foi um homem do seu tempo. A relevância que deu às mulheres do seu grupo e em geral estava fora do contexto de uma sociedade que, na altura, nem sequer as considerava dignas de testemunhar em tribunal. Jesus interferiu na ordem da sociedade patriarcal e despertou a potencialidade da mulher.

Nesta época o mundo parece limitar-se a uma máquina de produção/consumo num ritmo desenfreado que queima à sua volta, iludindo-nos de que é nela que temos um fundamento seguro. Jesus propôs uma lógica de vida em abundância para todos pela partilha generosa, tranquila e sem desperdício, do que temos e do que somos.

Nesta época os conflitos entre nações e entre grupos, armados ou não, sufocam o ar que respiramos, incentivando-nos subtil e permanentemente ao ódio e à retaliação. Jesus praticou e, pela prática, convocou à loucura da disponibilidade interior capaz de construir e de dar tudo por uma paz sólida, alicerçada na justiça e no arrependimento, no perdão dado pela vítima e no escândalo do amor ao inimigo.

Nesta época o centro das decisões continua a manter nas margens, a uma distância enorme e falsamente inultrapassável, os seus cidadãos descartáveis e invisíveis. Jesus mudou-se para fora da cidade e rodeou-se dos rejeitados do seu tempo, restituindo-lhes dignidade e futuro.

Nesta época abunda a mentira. Jesus afirmou e reafirmou que só a verdade nos fará livres. Viveu na verdade, tornou-se incómodo e sem, em nenhum momento perder a Liberdade, foi morto pela mentira.

Nesta época o centro das decisões continua a manter nas margens, a uma distância enorme e falsamente inultrapassável, os seus cidadãos descartáveis e invisíveis. Jesus mudou-se para fora da cidade e rodeou-se dos rejeitados do seu tempo, restituindo-lhes dignidade e futuro.

Dos crentes cristãos, o Mundo precisa dum sério exame de consciência sobre se os títulos dados a Jesus pela fé acabam por encobrir a falta de consistência no nosso estilo de vida, na nossa preocupação pelos pobres, nas nossas opções e decisões, confrontados com a vida e as palavras do Justo.

Do mundo laico, livre de preconceitos, a Terra e a Humanidade precisam que se consiga olhar para a personalidade Jesus, despido dos títulos da fé, e a torne referência cívica, social e política para as grandes questões dos nossos dias.

A todos, feliz Natal.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.